Padre José Assis Pereira Soares
Ficaram
para trás as festas de Natal e, quando tantos símbolos desaparecem das casas ou
das igrejas (presépios, luzes, estrelas, adornos) um novo sinal, por parte do
Senhor vem ao nosso encontro: sua Palavra é oferecida como um bom vinho,
generoso e abundante, na mesa da comunidade cristã.
O amor de
juventude, primeiro amor é o despertar dos sentidos ao amor, esse sentimento
tão profundo, tão humano e ao mesmo tempo tão divino. Para descrever o amor as
palavras ficam inexpressivas, são um mero balbuciar que trata inutilmente de
expressar-se. É uma realidade que só quando se sente se compreende. Podemos até
dizer que é o que mais se assemelha ao ser ou a essência de Deus. Talvez por
isso seja indizível, tão difícil de descrevê-lo, pois o Senhor ultrapassa em
muito nossa capacidade de entendimento. Se não fosse porque Ele mesmo se nos
revelou pouco saberíamos de sua grandeza. Assim, por tudo isso, temos de
reconhecer que só de forma analógica podemos compreender algo dele.
O profeta
Isaías (cf. Is 62,1-5) com palavras fortes, mas ao mesmo tempo poéticas, como
um belo poema profético de amor, nos fala de um Deus que ama com amor esponsal
seu povo, como um jovem apaixonado ama seu primeiro amor. O texto profético com
a descrição do casamento de um rei com sua esposa fala do amor de Deus pela
cidade de Sião, Jerusalém. Do mesmo modo, ao falar de uma Jerusalém nova anuncia
uma religião nova, revisada pelo amor eterno de Deus. Jerusalém é a esposa,
mas, o que faz uma esposa se em sua festa de casamento faltar o vinho novo do
amor? Isso é o que aconteceu na festa de casamento em Caná (cf. Jo 2,1-11).
Poderíamos
fazer uma leitura mariológica deste relato, o papel de Maria nas bodas de Caná,
como muitos já o fizeram, aliás, até nós mesmos seguimos fazendo. O fato mesmo
de que este relato foi posto como o segundo dos “mistérios da luz” do Rosário
de João Paulo II é um indício que impulsiona a isso. Mas, não devemos exagerar
nestes aspectos mariológicos que, aliás, no evangelho de São João não estão tão presentes, ao contrário
dos Sinóticos.
Nosso
relato é cristológico porque nos mostra que os “discípulos creram nele” (v.11).
Isso quer dizer que a mariologia do relato deve estar muito bem integrada na
cristologia. Maria no evangelho de João pode muito bem representar uma nova
comunidade dos seguidores de Jesus, como a "comunidade do discípulo
amado" e que vê a festa de casamento desses noivos que ficam sem vinho,
como a leitura crítica de um judaísmo ao qual combate o autor do evangelho de
João.
As “bodas
de Caná” como o primeiro sinal que Jesus faz neste evangelho e que preanuncia
tudo aquilo que Ele realizará em sua existência, é um relato estranho que não
descreve apenas uma festa de casamento, no universo cultural daquele tempo. A
noiva nem é mencionada. O noivo somente ao final é citado pelo mestre sala que
o chama e diz: “Tu guardaste o vinho bom até agora!” (v.10)
A “Mãe e
seu Filho” são os verdadeiros protagonistas deste episódio. Eles parecem na
verdade “os noivos” deste acontecimento. “Maria é apresentada por João na sua
qualidade de ‘Mãe de Jesus’, tal como junto à Cruz (cf. Jo 19,25-27), mas o
Filho chama-lhe ‘mulher’ (v. 4), nunca ‘Mãe’; também nunca é chamada de ‘Maria’
no Quarto Evangelho. Maria intervém para solicitar a ajuda de Jesus aos noivos
em dificuldade (v. 3). Jesus intervém e faz o Seu primeiro milagre.
No Quarto
Evangelho, os milagres realizados por Jesus são denominados de ‘sinais’, ou
seja, símbolos históricos que revelam o mistério da Sua pessoa e da Sua missão.
Manifestam a ‘glória’ que lhe foi concedida pelo Pai como Filho unigênito (v.
11; cf. Jo 1,14).” (Casarin, 2010.)
Talvez a
discussão exegética deste texto se tenha centrado muito no diálogo de Jesus e
sua Mãe. “Que queres de mim! Mulher? Minha hora ainda não chegou” (v.4). Mas,
no texto dá-se muita importância ao “vinho” que se menciona cinco vezes, já que
o vinho tem um significado messiânico.
A força da
mensagem deste evangelho é que Jesus, Palavra de vida no evangelho de João,
muda a água que devia servir para a purificação dos judeus, inclusive as jarras
estavam vazias. Há muitos vazios, muitas carências nesta festa de casamento e
na religião judaica. O “milagre” se faz presente de uma forma simples: primeiro
por um diálogo entre a Mãe e Jesus; depois pela “palavra” de Jesus que ordena
“encher” as jarras de água. A transformação da água em vinho significa a
abundância da vida que Jesus veio trazer ao mundo, a nova religião, a vida e a
verdadeira alegria de viver. João capacita o leitor para que leia nas entre
linhas do seu texto algo muito concreto: a velha ordem religiosa judaica foi
superada por Jesus. Água e vinho funcionam no relato como símbolos de duas
ordens distintas: lei (judaísmo), amor (Jesus).
O relato
tem conotações muito particulares, na linguagem dos símbolos e da teologia. Na
teologia de João há várias coisas que só podem ser compreendidas debaixo da
linguagem não explicita dos sinais. "O sinal é um símbolo histórico que
revela o que Jesus é mediante aquilo que Jesus faz. O início dos sinais em Caná
revela que Jesus é o Messias esperado, suscita a fé dos discípulos:
‘acreditaram n’Ele’”. (Ibid. Casarin)
Jesus e sua
mãe chegam por caminhos diferentes a estas bodas; faltar vinho em uma festa de
casamento é algo que raramente acontecia, porque desprestigiaria o noivo; Maria
atua, mais que como mãe, como pessoa atenta a uma festa que representa a
religião judaica, na qual ela se havia educado e havia educado seu Filho. Não é
insignificante que seja a Mãe quem sabia o que lhes faltava. Não é um casamento
real o que aqui se nos propõe considerar, mas, é um chamado ao vazio de uma
religião que perdeu o vinho da vida. Quando uma religião somente serve como
rito repetitivo e não como criadora de vida, perde sua glória e seu ser. Pois
uma religião sem amor é como um casamento sem amor.
“Sendo a
Mãe de Jesus a chamar a atenção para o problema, consideramos que Ela é
apresentada numa atitude de oração. Com efeito a oração de súplica e de
intercessão não consiste em exercer pressão sobre Deus, para O convencer, mas é
colocar-se na posição de necessitado e mendigo perante Deus... A intercessão de
Maria consiste em pôr-se do nosso lado, em vibrar conosco, de modo que fique
patente a nossa carência e se dilate a nossa alma para nos dispormos a receber
os dons do Céu. Ela aparece aqui como ícone da autêntica oração de súplica e de
intercessão”.(Sousa e Silva, 2013.)
Jesus,
pois, ante o pedido de pessoas fieis como sua mãe, que se apercebem do vazio
existente, adianta sua hora, seu momento decisivo, para tratar de oferecer vida
a quem a busca de verdade. Sua glória não radica em um milagre exótico, mas sim
em salvar e oferecer vida onde pode reinar o vazio e a morte. Essa será sua
causa, sua hora e a razão de sua morte ao final de sua existência, tal como
interpreta o evangelho de João a vida de Jesus de Nazaré. De uma religião nova
surgirá uma comunidade nova.
Essa pode
ser também nossa missão: ser sensíveis às necessidades das pessoas ou situações
que nos rodeiam. Aquilo que se diz: “o que os olhos não vêm, o coração não
sente”, não é uma boa filosofia para nós que cremos e esperamos em Jesus.
Parece
muitas vezes que nos acostumamos a praticar um tipo de religião: vazia, sem
sentido, sem enamoramento, sem paixão, sem amor, sem vida. Tomara que essa
declaração divina de amor, tão viva e acesa nas “bodas de Caná”, nos desperte e
nos impulsione a lhe corresponder, a amá-lo e querê-lo com toda nossa alma. Que
o Senhor neste Ano Santo da Fé, nos ajude a por o bom vinho de nossa fé, de
nosso testemunho, de nossa alegria cristã em tantas mesas, em tantas vidas que
se resumem a copos vazios, porque deixaram de ser cristãos, de ter uma referência
ao eterno, sem transcendência divina até em sua própria ação ministerial ou
pastoral.
Jesus nos
propõe anular as coisas vazias, uma religião de ritos estéreis e desumanizantes
ou não necessários para a verdadeira alegria e vida e nos convida a transformar
a água em que talvez se tornou o nosso amor, nossas relações interpessoais ou
matrimoniais, nossa religião; em vinho novo, sempre bom até agora: “Enchei as
talhas de água” (v. 7).
Cabe ainda
nos perguntar: o que está acontecendo com nossa comunidade cristã, ela é profética, transborda
em amor, vida e alegria? Será que nossas comunidades cristãs pequenas ou
grandes que se reúnem para celebrar a fé são como uma esposa amada de Deus;
bela e radiante que o encontra em Jesus como um esposo declarando-lhe seu amor?
Bibliografia
Textos e referências bíblicas: Bíblia de
Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
Casarin, Giuseppe. (org.) Lecionário
Comentado, Tempo Comum Semanas I-XVI. Lisboa, Paulus, 2010.
Sousa e
Silva, Manuel Fernando. (dir.) Celebração Litúrgica, Revista de Liturgia e
Pastoral, Ano C Nº 1, Braga (Portugal), Edições Licel, Dezembro 2012 - Janeiro
2013.
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