quarta-feira, janeiro 23, 2013

Jesus inaugura a religião do amor de Deus


Padre José Assis Pereira Soares


Ficaram para trás as festas de Natal e, quando tantos símbolos desaparecem das casas ou das igrejas (presépios, luzes, estrelas, adornos) um novo sinal, por parte do Senhor vem ao nosso encontro: sua Palavra é oferecida como um bom vinho, generoso e abundante, na mesa da comunidade cristã.
O amor de juventude, primeiro amor é o despertar dos sentidos ao amor, esse sentimento tão profundo, tão humano e ao mesmo tempo tão divino. Para descrever o amor as palavras ficam inexpressivas, são um mero balbuciar que trata inutilmente de expressar-se. É uma realidade que só quando se sente se compreende. Podemos até dizer que é o que mais se assemelha ao ser ou a essência de Deus. Talvez por isso seja indizível, tão difícil de descrevê-lo, pois o Senhor ultrapassa em muito nossa capacidade de entendimento. Se não fosse porque Ele mesmo se nos revelou pouco saberíamos de sua grandeza. Assim, por tudo isso, temos de reconhecer que só de forma analógica podemos compreender algo dele.
O profeta Isaías (cf. Is 62,1-5) com palavras fortes, mas ao mesmo tempo poéticas, como um belo poema profético de amor, nos fala de um Deus que ama com amor esponsal seu povo, como um jovem apaixonado ama seu primeiro amor. O texto profético com a descrição do casamento de um rei com sua esposa fala do amor de Deus pela cidade de Sião, Jerusalém. Do mesmo modo, ao falar de uma Jerusalém nova anuncia uma religião nova, revisada pelo amor eterno de Deus. Jerusalém é a esposa, mas, o que faz uma esposa se em sua festa de casamento faltar o vinho novo do amor? Isso é o que aconteceu na festa de casamento em Caná (cf. Jo 2,1-11).
Poderíamos fazer uma leitura mariológica deste relato, o papel de Maria nas bodas de Caná, como muitos já o fizeram, aliás, até nós mesmos seguimos fazendo. O fato mesmo de que este relato foi posto como o segundo dos “mistérios da luz” do Rosário de João Paulo II é um indício que impulsiona a isso. Mas, não devemos exagerar nestes aspectos mariológicos que, aliás, no evangelho de São João não estão tão presentes, ao contrário dos Sinóticos.
Nosso relato é cristológico porque nos mostra que os “discípulos creram nele” (v.11). Isso quer dizer que a mariologia do relato deve estar muito bem integrada na cristologia. Maria no evangelho de João pode muito bem representar uma nova comunidade dos seguidores de Jesus, como a "comunidade do discípulo amado" e que vê a festa de casamento desses noivos que ficam sem vinho, como a leitura crítica de um judaísmo ao qual combate o autor do evangelho de João.
As “bodas de Caná” como o primeiro sinal que Jesus faz neste evangelho e que preanuncia tudo aquilo que Ele realizará em sua existência, é um relato estranho que não descreve apenas uma festa de casamento, no universo cultural daquele tempo. A noiva nem é mencionada. O noivo somente ao final é citado pelo mestre sala que o chama e diz: “Tu guardaste o vinho bom até agora!” (v.10)
A “Mãe e seu Filho” são os verdadeiros protagonistas deste episódio. Eles parecem na verdade “os noivos” deste acontecimento. “Maria é apresentada por João na sua qualidade de ‘Mãe de Jesus’, tal como junto à Cruz (cf. Jo 19,25-27), mas o Filho chama-lhe ‘mulher’ (v. 4), nunca ‘Mãe’; também nunca é chamada de ‘Maria’ no Quarto Evangelho. Maria intervém para solicitar a ajuda de Jesus aos noivos em dificuldade (v. 3). Jesus intervém e faz o Seu primeiro milagre.
No Quarto Evangelho, os milagres realizados por Jesus são denominados de ‘sinais’, ou seja, símbolos históricos que revelam o mistério da Sua pessoa e da Sua missão. Manifestam a ‘glória’ que lhe foi concedida pelo Pai como Filho unigênito (v. 11; cf. Jo 1,14).” (Casarin, 2010.)
Talvez a discussão exegética deste texto se tenha centrado muito no diálogo de Jesus e sua Mãe. “Que queres de mim! Mulher? Minha hora ainda não chegou” (v.4). Mas, no texto dá-se muita importância ao “vinho” que se menciona cinco vezes, já que o vinho tem um significado messiânico.
A força da mensagem deste evangelho é que Jesus, Palavra de vida no evangelho de João, muda a água que devia servir para a purificação dos judeus, inclusive as jarras estavam vazias. Há muitos vazios, muitas carências nesta festa de casamento e na religião judaica. O “milagre” se faz presente de uma forma simples: primeiro por um diálogo entre a Mãe e Jesus; depois pela “palavra” de Jesus que ordena “encher” as jarras de água. A transformação da água em vinho significa a abundância da vida que Jesus veio trazer ao mundo, a nova religião, a vida e a verdadeira alegria de viver. João capacita o leitor para que leia nas entre linhas do seu texto algo muito concreto: a velha ordem religiosa judaica foi superada por Jesus. Água e vinho funcionam no relato como símbolos de duas ordens distintas: lei (judaísmo), amor (Jesus).
O relato tem conotações muito particulares, na linguagem dos símbolos e da teologia. Na teologia de João há várias coisas que só podem ser compreendidas debaixo da linguagem não explicita dos sinais. "O sinal é um símbolo histórico que revela o que Jesus é mediante aquilo que Jesus faz. O início dos sinais em Caná revela que Jesus é o Messias esperado, suscita a fé dos discípulos: ‘acreditaram n’Ele’”. (Ibid. Casarin)
Jesus e sua mãe chegam por caminhos diferentes a estas bodas; faltar vinho em uma festa de casamento é algo que raramente acontecia, porque desprestigiaria o noivo; Maria atua, mais que como mãe, como pessoa atenta a uma festa que representa a religião judaica, na qual ela se havia educado e havia educado seu Filho. Não é insignificante que seja a Mãe quem sabia o que lhes faltava. Não é um casamento real o que aqui se nos propõe considerar, mas, é um chamado ao vazio de uma religião que perdeu o vinho da vida. Quando uma religião somente serve como rito repetitivo e não como criadora de vida, perde sua glória e seu ser. Pois uma religião sem amor é como um casamento sem amor.
“Sendo a Mãe de Jesus a chamar a atenção para o problema, consideramos que Ela é apresentada numa atitude de oração. Com efeito a oração de súplica e de intercessão não consiste em exercer pressão sobre Deus, para O convencer, mas é colocar-se na posição de necessitado e mendigo perante Deus... A intercessão de Maria consiste em pôr-se do nosso lado, em vibrar conosco, de modo que fique patente a nossa carência e se dilate a nossa alma para nos dispormos a receber os dons do Céu. Ela aparece aqui como ícone da autêntica oração de súplica e de intercessão”.(Sousa e Silva, 2013.)
Jesus, pois, ante o pedido de pessoas fieis como sua mãe, que se apercebem do vazio existente, adianta sua hora, seu momento decisivo, para tratar de oferecer vida a quem a busca de verdade. Sua glória não radica em um milagre exótico, mas sim em salvar e oferecer vida onde pode reinar o vazio e a morte. Essa será sua causa, sua hora e a razão de sua morte ao final de sua existência, tal como interpreta o evangelho de João a vida de Jesus de Nazaré. De uma religião nova surgirá uma comunidade nova.
Essa pode ser também nossa missão: ser sensíveis às necessidades das pessoas ou situações que nos rodeiam. Aquilo que se diz: “o que os olhos não vêm, o coração não sente”, não é uma boa filosofia para nós que cremos e esperamos em Jesus.
Parece muitas vezes que nos acostumamos a praticar um tipo de religião: vazia, sem sentido, sem enamoramento, sem paixão, sem amor, sem vida. Tomara que essa declaração divina de amor, tão viva e acesa nas “bodas de Caná”, nos desperte e nos impulsione a lhe corresponder, a amá-lo e querê-lo com toda nossa alma. Que o Senhor neste Ano Santo da Fé, nos ajude a por o bom vinho de nossa fé, de nosso testemunho, de nossa alegria cristã em tantas mesas, em tantas vidas que se resumem a copos vazios, porque deixaram de ser cristãos, de ter uma referência ao eterno, sem transcendência divina até em sua própria ação ministerial ou pastoral.
Jesus nos propõe anular as coisas vazias, uma religião de ritos estéreis e desumanizantes ou não necessários para a verdadeira alegria e vida e nos convida a transformar a água em que talvez se tornou o nosso amor, nossas relações interpessoais ou matrimoniais, nossa religião; em vinho novo, sempre bom até agora: “Enchei as talhas de água” (v. 7).
Cabe ainda nos perguntar: o que está acontecendo com nossa comunidade cristã, ela é profética, transborda em amor, vida e alegria? Será que nossas comunidades cristãs pequenas ou grandes que se reúnem para celebrar a fé são como uma esposa amada de Deus; bela e radiante que o encontra em Jesus como um esposo declarando-lhe seu amor?

Bibliografia
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
Casarin, Giuseppe. (org.) Lecionário Comentado, Tempo Comum Semanas I-XVI. Lisboa, Paulus, 2010.
Sousa e Silva, Manuel Fernando. (dir.) Celebração Litúrgica, Revista de Liturgia e Pastoral, Ano C Nº 1, Braga (Portugal), Edições Licel, Dezembro 2012 - Janeiro 2013.

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