domingo, janeiro 29, 2012

Anunciar a Palavra com a autoridade do testemunho


Padre José Assis Pereira Soares
Pároco da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima
Campina Grande /PB

Aqui vimos mais uma vez ao encontro de Jesus, que nos vai falar. “Consideramos a Igreja como ‘casa da Palavra’, deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia sagrada. Esta constitui, efetivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida: fala hoje ao seu povo, que escuta e responde.” (Verbum Domini n. 52) Este ano, nas celebrações dominicais, a Liturgia propõe à nossa meditação o Evangelho de São Marcos que nos revela que Jesus fala com autoridade porque é o Filho de Deus.
O Livro do Deuteronômio (cf. Dt 18,15-20) nos situa no universo do profetismo em Israel. “O termo ‘profeta’ deriva do grego, ‘alguém que fala diante dos outros’, alguém que comunica uma revelação divina, chamado por Deus para falar por ele. O profetismo hebraico é geralmente reconhecido pelos estudiosos como um fenômeno único e decididamente hebraico... Suas origens e o primitivo desenvolvimento da profecia hebraica são um tanto obscuros... Moisés é, na verdade, o principal dentre todos os profetas e maior do que qualquer deles é o supremo exemplo de quem recebe a palavra de Iahweh e a diz a Israel, de quem conduz Israel nas afirmações das crenças básicas israelitas.” (Mckenzie, 1984.)
Para o Deuteronômio, o profeta-tipo é Moisés, o místico no sentido mais profundo da palavra, o mediador da Antiga Aliança (Dt 18,15), mas no futuro haverá outro profeta como ele, o Messias, “um profeta poderoso em obra e em palavra, diante de Deus e diante de todo o povo” (Lc 24,19) apogeu do profetismo. Moisés não é simplesmente o libertador da escravidão do Egito, com o Êxodo; elemento fundante da identidade de Israel como Povo da Aliança e o legislador a quem é confiada a Lei como caminho de vida, mas é tido como o primeiro e o protótipo de todos os profetas.
O povo pediu ao Senhor que não lhes falasse mais diretamente, não queriam que o Senhor continuasse falando através de manifestações como o fogo, sarça ardendo, nuvem, trovão ou outras teofanias e sim lhes falasse diretamente através de um mediador. Então o Senhor lhes fala por meio de Moisés: ”Vou suscitar para eles um profeta como tu, do meio dos seus irmãos. Colocarei as minhas palavras em sua boca e ele lhes comunicará tudo o que eu lhe ordenar.” (Dt 18,18) O profeta é assim um mediador, um porta-voz da Palavra de Deus, ao serviço do povo que sendo um bom ouvinte, distinguirá o profeta verdadeiro do falso profeta que é apoiado pelo falso ouvinte. 
Todos nós, em algum momento, podemos ser profetas e falar a outros em nome de Deus e todos nós, em algum momento, podemos ouvir pessoas que falam em nome de Deus. Em um e outro caso, devemos saber distinguir o que é voz de Deus e o que é mera voz humana. Para nós cristãos, o critério decisivo para saber fazer esta distinção é o Evangelho de Jesus. Deus nos fala por meio de seu Filho e nossas palavras e as palavras de outros serão tanto mais verdadeiras quanto mais se apoiarem da Palavra de seu Filho, a Palavra de Deus.


Hoje vivemos num mundo da linguagem total, inundados de sons, imagens e, sobretudo palavras. Cada dia despertamos ou adormecemos com as palavras que ouvimos no rádio ou na televisão; palavras que lemos nos jornais ou na internet; palavras, palavras, palavras… sofremos uma autêntica "inflação verbal".
"Quem dera ouvísseis hoje a sua voz: «Não endureçais os vossos corações».” Sl 94(95) Também Jesus falou diversas vezes da dureza do coração de seus ouvintes. Se pode por resistência a Deus, as pessoas podem fechar-se a ele e negar-se a escutar sua voz. Às vezes isso não se trata nem de má vontade. É que custa reconhecer "essa voz" em meio a tantas outras vozes que ressoam em nossos ouvidos e dentro de nós. Muitas vezes o coração está surdo de tantos ruídos ensurdecedores: são inclinações desordenadas e vícios que conduzem à surdez do pecado, à mentalidade deste mundo que se opõe ao projeto de Deus, cedendo às modas, aos "slogans" publicitários. Sabemos o quão fácil que resulta confundir as próprias opiniões, os próprios desejos com a voz do Espírito em nós e o fácil que é, por conseguinte, cair em caprichos e no subjetivismo. Tenho que fazer silêncio, calar tudo em mim para descobrir a voz de Deus. E tenho que extrair essa voz como se tira um diamante do barro: limpá-lo, lapidá-lo e fazê-lo brilhar isto é deixar-se guiar por esta voz. Então também poderei ser guia para outros, ser palavra com autoridade convincente para outros.
No texto evangélico de hoje (cf. Mc 1,21-28) Marcos nos conduz pela primeira ação pública de Jesus no cenário ou espaço sagrado da sinagoga de Cafarnaum, em um dia, isto é em um tempo sagrado, o sábado. Ali Jesus ensina e todos “estavam espantados com o seu ensinamento, pois ele os ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas”. (Mc 1,22) O evangelista põe em evidência dois aspectos importantes: a autoridade de Jesus e o seu poder sobre os demônios.
A palavra “autoridade” não significa autoritarismo, nem muito menos despotismo, mas eficácia: “Jesus ensina com autoridade”; “é a autoridade que vem do carisma e não do poder; é a autoridade pela qual Jesus optou. O poder dá-se e tira-se de braço no ar ou pelos votos; mas a autoridade ganha-se a pulso, merece-se e goza-se. Ter autoridade supõe ter carisma [...] O poder abre muitas portas, enche muitos bolsos, obriga, impõe silêncio, atribui-se carismas e inclusivamente suplanta o espírito; mas não serve para tornar as pessoas melhores e mais livres. Pelo contrário, o carisma não se atribui poderes, fala até com o silêncio, liberta o homem e torna transparente o Espírito. Esse segundo foi o estilo de Jesus e deve ser o do cristão e da Igreja”. (Caballero, 2000.)
“Jesus ensina com autoridade porque confirma com seus atos o que pronuncia seus lábios. O que mais chama a atenção dos seus ouvintes é isto: um ensinamento novo. Eles estavam acostumados a ouvir fariseus e escribas, vem agora esse jovem “rabi” que ensina a partir de sua própria autoridade. Jesus não é um repetidor de lições da tradição rabínica, nunca cita os mestres de Israel e suas palavras sempre estão iluminadas por um espírito novo. Os escribas, mais juristas que teólogos, interpretavam os mandamentos e expunham as verdades da Escritura, mas não arriscavam sua opinião pessoal, limitavam-se a repetir as lições dos mestres rabínicos acreditados. Nisso Jesus se distingue totalmente. Os escribas e fariseus quando falavam na sinagoga, falavam bem e até com certo grau de conhecimento da Lei, mas suas palavras ficavam só nisso: em palavras. Não havia correspondência entre o que diziam e o que faziam; suas palavras eram palavras vazias, sem força persuasiva, sem autoridade. Em troca, Jesus fala como quem tem autoridade, porque é consciente de que nele e em sua mensagem a Lei e os Profetas adquirem plenitude de sentido. Quando Jesus diz algo, isso se cumpre. As palavras de Jesus não são palavras vazias, ou frases mais ou menos bonitas ou de efeito. Por isso sua palavra é poderosa para perdoar os pecados que só Deus pode perdoar, para curar enfermos e ressuscitar os mortos  e para ordenar até aos demônios e submetê-los a sua vontade. Por isso fala com autoridade e dispõe da Lei e quando apela para Moisés, atreve-se a dizer: “Ouvistes o que foi dito... eu, porém vos digo..."
O outro aspecto é o poder sobre os demônios: “Estava na sinagoga deles um homem possuído de um espírito impuro, que gritava dizendo: Que queres de nós Jesus Nazareno? Vieste para arruinar-nos? Sei quem tu és: o Santo de Deus. Jesus porém, o conjurou severamente: Cala-te e sai dele. Então o espírito impuro, sacudindo-o violentamente e soltando grande grito, deixou-o.” (Mc 1,23-26) Até “os espíritos imundos lhe obedecem”, quer dizer, nada é capaz de contrariar ou anular a força da sua Palavra. O demônio procurou distrair e desviar Jesus para a lógica humana de um messianismo poderoso politicamente e com sucesso. Mas, a cruz de Cristo será a ruína do demônio.
Também nós temos inimigos que querem nos desviar de Jesus, são as nossas más inclinações e os vícios. Temos a influência dos outros para o mal. Com os seus maus exemplos e seus maus conselhos. Mas temos, sobretudo, os ataques do demônio, que procura nos enganar e nos afastar de Deus. Jesus tem mais poder que todos eles. Temos de recorrer a Jesus para vencer seus enganos guiados pelos seus ensinamentos e apoiados na sua graça, que não nos faltará se empregarmos seus meios. O demônio é uma realidade, procura enganar-nos e perder-nos. Uma de suas vitórias muito importante para ele foi convencer muitos cristãos que ele não existia. Assim ficam à sua mercê. Temos que ter cuidado com seus enganos. São Pedro avisava os cristãos: “Irmãos sede sóbrios e vigiai, porque o demônio, o vosso adversário, anda à vossa volta como um leão a rugir, procurando a quem devorar. Resisti-lhe fortes na fé”. (1Pd 5,8-9)
"Quem dera ouvísseis hoje a sua voz: «Não endureçais os vossos corações».” Estas palavras são um bom conselho para cada um de nós todos os dias de nossa vida. Estar sempre atentos à voz do Senhor e cumprir o que o ele nos diz. Que a palavra do Senhor seja para nós palavra eficaz, que acatemos sempre com coração obediente ao que o Senhor nos manda. Que o falar de Cristo, seu evangelho, seja sempre para nós um falar com autoridade, uma palavra que se cumpra em nós. Poderíamos até nos perguntar, os discípulos de Jesus: quando falamos o fazemos com autoridade? Fazemos o que dizemos e se faz o que nós dizemos?
“É a própria Palavra que nos impele para os irmãos; é a Palavra que ilumina, purifica, converte; nós somos apenas servidores. Por isso, é necessário descobrir cada vez mais a urgência e a beleza de anunciar a palavra para a vinda do reino de Deus, que o próprio Cristo pregou... Não se trata de anunciar uma palavra anestesiante, mas desinstaladora, que chama à conversão, que torna acessível o encontro com Ele, através do qual floresce uma humanidade nova.” (Verbum Domini, 93)
As pessoas hoje, ainda que nos pareça o contrário buscam ensinamentos ou palavras consistentes; buscam pessoas que não sejam pregadoras de si mesmas, como que hasteando suas próprias bandeiras, mas buscam quem saiba transmitir a Palavra da Verdade que brota de dentro de seu interior. Onde está nosso coração? Em Deus? Então, nele estará a fonte de nossa inspiração, de nossas palavras, de nossa forma de ser, de nossa autoridade. Alguns já o reconheceram ou, talvez, faz tempo que desconectamos dessa verdadeira fonte de vida e de graça que é Deus?
Os cristãos ao nos aproximarmos hoje cada vez mais dos meios de comunicação, grande instrumento de anúncio da Palavra, de evangelização dificilmente encontramos algo que nos surpreenda e nos encante. Anda em falta a palavra profética, a muitos que exercem o ministério do ‘blá-blá-blá”, falando por falar e sem ter nada de especial para dizer. Temos encontrado nos pregadores às vezes um estilo de vida que é pura superficialidade, aparências nada mais. Quanto à palavra anunciada mais parece fórmulas mágicas e eficazes contra todo mal ou mero doutrinamento que logo cai em meras palavras, em psicologismo, sensacionalismo ou emocionalismo barato ou às vezes apenas ruídos estéreis que nada dizem, como slogans ou chavões de animadores de auditório ou agitadores de galeras.
A palavra ou o ensinamento com “autoridade” como Jesus concebia era a impressionante concordância dessa tríplice dimensão: Fé – Palavra – Vida.
“Há uma relação estreita entre o testemunho da Escritura, como atestado que a Palavra de Deus dá de si mesma, e o testemunho da vida dos crentes. Um implica e conduz ao outro. O testemunho cristão comunica a Palavra atestada nas Escrituras. Por sua vez, as Escrituras explicam o testemunho que os cristãos são chamados a dar com a própria vida. Deste modo, aqueles que encontram testemunhas credíveis do Evangelho são levados a constatar a eficácia da palavra de Deus naqueles que a acolhem.” (Verbum Domini, 97.) Não podemos nunca, jamais esquecer que a missão evangelizadora e a autoridade da profética da Igreja vêm igualmente da articulação entre Palavra e testemunho, isto será sempre um chamado ao profetismo, ao anúncio que sacuda consciências adormecidas com a única pretensão de que o mundo que se apartou da relação com Deus, se deixe novamente guiar pelo ensinamento verdadeiramente novo e libertador: o Evangelho.

Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus Editora, 2002.
Mckenzie, John L,, Dicionário Bíblico, São Paulo, Paulus Editora, 1983.
Bento XVI. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini, sobre a Palavra de Deus  na vida e missão da Igreja. São Paulo, Paulinas, 2010.
Caballero, B. A Palavra de cada dia. Portugal, Paulus Editora, 2000.

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