domingo, outubro 16, 2011

Religião e política




Os dirigentes e líderes religiosos judeus sentiram-se profundamente atingidos pelas três parábolas, que refletimos nos domingos passados: a dos convidados indelicados, dos vinhateiros homicidas ou dos dois filhos caprichosos (cf. Mt 21,28–22,14); que Jesus dirigiu a eles denunciando o seu fechamento ao anúncio do Reino. Agora essas lideranças passam ao ataque, tentando envolver Jesus com perguntas maliciosas que o condenassem por suas próprias palavras. (cf. Mt 22,15-22)
Tanto os fariseus como os partidários de Herodes sabiam muito bem que Jesus não atuava como uma liderança política, mas como líder religioso. E como tal eles nunca encontraram nele alguma falha, nem em suas palavras, nem em suas obras. Mas, ao mesmo tempo, notavam que a autoridade religiosa de Jesus era superior à autoridade que eles tinham ante seus partidários. Precisava encontrar o quanto antes algum meio para desautorizar a Jesus, ou desacreditá-lo junto ao povo. Para tanto tinham que mesclar a religião com a política para conseguir o seu intento. Isto foi o que uniu estes dois grupos tão diferentes entre si como os fariseus e os herodianos.
Os fariseus eram nacionalistas e eram contra pagar o tributo a César; os herodianos eram partidários de Roma e, consequentemente, de pagar o tributo. A pergunta ardilosamente feita por eles a Jesus foi: “É lícito pagar imposto a César, ou não?” (Mt 22,17) Jesus, em sua resposta, tinha que por-se necessariamente contra os fariseus e todos os que eram nacionalistas, ou contra os herodianos e os que eram partidários de Roma. Em qualquer caso Jesus perderia prestígio ante um grande número de pessoas, de um ou outro partido. Além disso, a pergunta veio envolvida em belos e fingidos elogios a Jesus: “Sabemos que és verdadeiro e que de fato não consideras um homem pelas aparências.” (Mt 22,16) Hipócritas! Diz Jesus. Sua resposta surpreenderá a todos: “Mostrai-me a moeda do imposto. Apresentaram-lhe um denário. Disse ele: de quem é esta imagem e a inscrição? Responderam: De César. Então lhes disse: Dai, pois. O que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus.” (Mt 22,19-21)
Já sabemos que naquele tempo o império romano dominava o povo judeu. Como consequência disso, os judeus tinham que pagar um imposto a Roma. Esse imposto o cobrava os publicanos e se pagava com uma moeda, um “denário” de prata, que tinha a imagem de César, de Roma, naquele tempo, Tibério, e uma inscrição em latim que dizia mais ou menos assim: “Tiberius Caesar Divi Augusti Filius Augustus” = Tibério César, filho do divino Augusto”. E no reverso da moeda se podia ver o mesmo “divino César” de perfil e a inscrição: “divus et pontifex maximus” = O sumo sacerdote.
“A exortação: ‘mostrai-me a moeda do tributo’ (22,19) deixa que se autodenunciem os hipócritas pelo fato de possuírem a moeda injuriosa... Esta resposta de Jesus tornou-se para a comunidade primitiva o modelo clássico para o seu relacionamento como os poderes políticos... Só percebemos o valor prático da resposta de Jesus se soubermos ouvi-la dentro do confronto das animosidades políticas e político-religiosas. A pergunta, revestida de traiçoeira capciosidade, tem o seu peso dentro dessas circunstâncias perigosas. De repente, perceberá a originalidade e a coragem da resposta, se alguém considerar o fato de que as moedas, na antiguidade, não tinham apenas o seu valor real-representativo, mas também simbólico. É só no âmbito da sua soberania que o imperador pode por em circulação as moedas cunhadas com a sua efígie... Pagar tributos com tal moeda significava, para um judeu autêntico, reconhecer aquele regente pagão, cujas loucas pretensões divinas ameaçavam constituir-se em insuportável rivalidade com o Senhor.” (Bouzon e Romer, 1978.)
“Dai, pois. O que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus.” Estamos diante de um dos textos mais discutidos e mal compreendidos do evangelho, alvo das mais variadas interpretações. Esta frase passou para a história como uma definição da brecha que se abre entre Deus e o poder político. Inclusive nos tempos posteriores do cristianismo, onde se confundiam os poderes políticos e religiosos, a resposta de Jesus aos fariseus ficava como um convite a não fazer política com o nome de Deus, ainda que fatalmente se fosse seguir, durante muitos séculos, e hoje mesmo, fazendo política. Todavia, houve e há muita tentação em converter a religião em política, ou que essa mesma política mediatize a liberdade religiosa. E, sem sombra de dúvida, aí estão palavras de Jesus que marcam uma equidistância entre ambas as coisas.
Alguns entenderam os extremos da frase, César e Deus, Igreja e Estado como opostos e mutuamente exclusivos. As coisas de César, a política não devem ser misturadas com as de Deus, a religião. Esta maneira de entender serve, naturalmente, aos interesses dos que têm o poder na sociedade que veem aqui uma justificativa para manter a religião longe da política, da economia, da justiça social, da ciência e da cultura. Na V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, os bispos reunidos assim se expressaram quanto ao papel dos discípulos e missionários na vida pública: “Tanto um antigo laicismo exacerbado, como um relativismo ético que se propõe como fundamento da democracia, animam fortes poderes que pretendem refutar toda presença e contribuição da Igreja na vida pública das nações e a pressionam para que se retire para os templos e para seus serviços ‘religiosos’. Consciente da distinção entre comunidade política e comunidade religiosa, base da sadia laicidade, a Igreja não deixará de se preocupar pelo bem comum dos povos e, em especial, pela defesa de princípios éticos não negociáveis porque estão arraigados na natureza humana.” (Documento de Aparecida, 504)
Para o cristão, leigo ou leiga, é urgente buscar inspiração nas atitudes de Jesus de Nazaré como cidadão, modelo para a sua conduta na sociedade civil, nas relações sociais e na participação política. O Concílio Vaticano II (1962-1965) denunciava como um dos erros mais graves do nosso tempo [...] o divórcio entre fé professada e vida cotidiana [...] Ao negligenciar os seus deveres temporais, o cristão negligencia os seus deveres para o próximo e o próprio Deus e coloca em perigo a sua salvação eterna’ (Gaudium et Spes, 43)”. A fé não pode ser vivida de uma maneira desligada das realidades deste mundo, não pode ser praticada em segredo, no próprio quarto, ou na Igreja somente. A religião condiciona todas as escolhas da pessoa e todas as horas da sua vida, portanto não pode deixar de influir também sobre opções políticas e sobre o cumprimento dos deveres de cidadão. “Para os fieis leigos, o compromisso político é uma expressão qualificada e exigente do compromisso cristão ao serviço dos outros. A persecução do bem comum em um espírito de serviço; o desenvolvimento da justiça com uma atenção particular para com as situações de pobreza e sofrimento; o respeito pela autonomia das realidades terrenas; o princípio da subsidiariedade; a promoção do diálogo e da paz no horizonte da solidariedade; são estas as orientações em que os cristãos leigos devem inspirar sua ação política. Todos os que creem, enquanto titulares de direitos e deveres de cidadãos, estão obrigados a respeitar tais orientações; aqueles que têm encargos diretos e institucionais na gestão das complexas problemáticas da coisa pública, seja nas administrações locais, seja nas instituições nacionais e internacionais, deverão tê-las especialmente em conta. [...] No contexto do compromisso político do fiel leigo, exige um cuidado específico a preparação para o exercício do poder, que os crentes devem assumir; especialmente quando são chamados a tais encargos pela confiança dos cidadãos, segundo as regras democráticas.” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja n. 565. 567)
Há, porém restrições à atuação político-partidária dos clérigos. “O sacerdote, servidor da Igreja que em virtude da sua universalidade e catolicidade não pode ligar-se a nenhuma contingência histórica, estará acima de qualquer facção política. Ele não pode tomar parte ativa em partidos políticos ou na condução de associações sindicais... embora estas coisas sejam boas em si mesmas, são alheias ao estado clerical, enquanto podem constituir um perigo grave de ruptura da comunidade eclesial”. (Diretório para o ministério e a vida do presbitero n. 33)
O cristão deve ser o melhor cidadão. O melhor discípulo deve ser o melhor e mais completo cidadão. Nada do que devemos a Deus damos a César. Mas a fé religiosa não nos exime de obedecer à autoridade legítima e justa e com ela colaborar: pagamento de impostos, cumprimento de leis, responsabilidade cívica, participação democrática e construtiva e solidariedade na justiça. O que nos toca agora a nós é examinar se no momento atual também nós misturamos religião e política, com fins exclusivamente políticos.
É evidente que minhas convicções religiosas podem e devem influir em minhas decisões políticas, mas o que nunca devo fazer é identificar religião com siglas partidárias. O cristianismo verdadeiro é universal e ecumênico e dentro do cristianismo cabem as afiliações políticas as mais diversas. O cristão pode e deve respeitar outros cristãos que têm uma orientação político-partidária diferente da sua. Não usemos a religião como arma política.
Jesus anuncia o Reino de Deus, que não se pode equiparar a nenhum reino deste mundo, nem a nenhum projeto político ou “partido”. Só Deus é o Senhor da história. “Eu sou o Senhor, não existe outro: fora de mim não há deus.” (Is 45,5) Mas, para poder plantar os valores do seu Reino na sociedade humana e na história é necessário que a fé, o cristão não fique fechado no âmbito do pessoal ou privado. Por isso, este evangelho dá para falar da importância que tem que os cristãos participem ativamente exercendo sua cidadania na vida política, reconhecendo o lugar de Deus e o de “César”.
Qual a aplicação que tudo isto tem para nossa vida? Eu sugeriria duas coisas: em primeiro lugar, reconhecer que o projeto do Reino de Deus tem uma repercussão política, quer dizer, social, já que pretende promover uma transformação profunda da sociedade desde os próprios valores do Reino, fundamentalmente promovendo o bem comum de todas as pessoas, especialmente dos mais pobres. E em segundo lugar, agir como Jesus que não utiliza a política como instrumento de poder para impor seu Reino, mas introduz os valores do Reino como a verdade, a justiça, a solidariedade, a fraternidade… na sociedade e o faz através de sua presença ativa.

Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002
Bouzon, Emanuel; Romer, Kerl Josef. A Palavra de Deus no anúncio e na oração. São Paulo, Paulinas, 1978.
Pontifício Conselho Justiça e Paz. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo, Paulinas, 2005.
Conselho Episcopal Latino-Americano. Documento de Aparecida. São Paulo, Edições CNBB/Paulus/Paulinas, 2007.
Congregação para o Clero. Diretório para o ministério e a vida do presbítero. Petróplis, Vozes, 1994.

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