domingo, outubro 23, 2011

O amor é que conta


<-- Pe. José Assis Pereira Soares
Pároco da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima
Campina Grande/PB

Neste Domingo a Liturgia nos põe diante do mistério de um Deus-Amor que se aproxima da humanidade, se revela por Jesus que “uniu-se de certo modo a todo homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano”, como diz o Concílio Vaticano II na “Gaudium et spes” n. 22. “Se assim por amor o Filho de Deus mergulhou no mistério humano, nós pelo amor devemos mergulhar no mistério de Deus. Tudo quanto fizermos, em palavras e obras, com as mãos ou com a inteligência, com a vontade ou com o coração, há de ser expressão do nosso amor a Deus.” (Neotti, 2001.) Jesus nos oferece um novo modelo de amor a partir de sua entrega viva e amorosa aos outros. E Ele nos ensinou que o amor ao próximo é semelhante ao amor a Deus.
O povo de Israel foi muito bem educado. Em comparação com outras religiões, a de Israel dá um peso muito grande à ética. Infelizmente os mestres da Lei e os fariseus haviam deformado o espírito inicial da Lei. Num fragmento do Código da Aliança do Êxodo (cf. Ex 22, 20-26), semelhante a outros códigos procedentes do Oriente, se especifica a estreita relação entre lei moral e religiosa e a proteção aos mais fracos expresso em sentido negativo: Não oprimir os estrangeiros e migrantes, prática comum daquele tempo e ainda hoje; não explorar órfãos e viúvas, categorias sociais representativas dos mais pobres; não especular ou exigir juros astronômicos do dinheiro emprestado a um pobre. “Todas as prescrições têm unidas a si explicações e motivações que se reforçam a partir da perspectiva religiosa. Os pobres são aqui representados pelo estrangeiro, o orfão e a viúva, o necessitado que tem que pedir, aquele que empenha as suas roupas para obter um empréstimo urgente... O povo de Deus é desafiado por eles, pois a lei que os protege tem a mesma exigência que o preceito espiritual; este cumpre-se precisamente ao cumprir aquela”. (Bíblia Litúrgica) 
Descobrimos assim um Deus que, desde sempre, se posicionou do lado dos pobres. Deus escuta os gritos do oprimido, diz o Senhor: “Se o afligires e ele gritar a mim, escutarei seu grito.” (Ex 22,22) O amor de Deus é gratuito e universal, mas esta universalidade passa, podemos até dizer, pela parcialidade do amor aos mais fracos. Já não há distinção entre raças, línguas ou culturas porque Deus é Pai de todos e ama indistintamente a todos e quer salvar a todos. Porém, nos ensina acima de tudo que este amor é solidário.
Em uma sociedade onde abunda o egoísmo, o individualismo, o anonimato, a solidão, o vazio de carinho, é necessário anunciar que “Deus é compassivo” (Ex 22,26). Porém não basta gritar: “Eu te amo, Senhor!” Mas, tornar o amor de Deus visível e concreto no amor ao próximo. O disse São João: “Se alguém disser. ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão é um mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar.” (1Jo 4,20) Como disse São João da Cruz (séc. XVI) no seu lema de vida: “Na tarde da vida seremos julgados a respeito do amor”. Temos de entender o amor como Cristo o entendeu: como autodoação, como verdadeira entrega, amor que se dá. Um amor que é “ágape”, amor fraterno. Viver como irmãos supõe assumir um novo estilo de vida, valores novos que nos levam a viver em comunhão com os excluídos, os marginalizados, os preferidos de Deus. Talvez, nos faz falta despojarmo-nos de toda a roupagem legalista e de rótulos com que temos coberto nossa fé em Deus.
Seguindo o evangelho de São Mateus (cf. Mt 22, 34-40), continuando na mesma linha do domingo passado observando como os fariseus, zelosos cumpridores ao menos aparentemente dos preceitos legais, querem eles com mais uma pergunta comprometer Jesus, “a fim de pô-lo à prova”:  “Mestre, qual é o primeiro mandamento da Lei?” (Mt 22,36) Era uma realidade entre os rabinos a discussão sobre qual o maior mandamento já que segundo as escolas e correntes a que pertenciam se situavam em primeiro lugar um ou outro dentre as 613 normas.
Jesus respondeu com as palavras do Deuteronômio (cf. Dt 6,5): “Amarás ao Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda a tua alma e de todo teu espírito.” (Mt 22,37) A novidade de Jesus é assemelhar este mandamento primeiro ao segundo: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,39). Palavras que aparecem no livro do Levítico 19. No entanto, Jesus vai ampliar este amor também ao estrangeiro e ao inimigo.
A resposta de Jesus orienta a atenção em várias direções importantes. Em primeiro lugar, remete a uma palavra que todo piedoso judeu recita três vezes ao dia na oração chamada “shemá” em que confessa e proclama a unidade de Deus: “Ouve, ó Israel o Senhor nosso Deus é o único Senhor!”  (Dt 6, 4). A confissão do Deus único e verdadeiro é prévia para compreender o mandamento do amor a Deus sobre tudo e sobre todas as coisas. Só a partir do reconhecimento de um único Deus se pode falar de um amor exclusivo, porque amar leva a dedicar-se a Ele, obedecer-lhe, servir-lhe e cumprir sua vontade manifestada na Aliança. Fé monoteísta e exclusividade do amor de Deus vão inseparavelmente unidas.
Em segundo lugar, as expressões resumidas em Mateus procedentes do Deuteronômio, refletem a compreensão hebraica de que Deus quer ser reconhecido e amado com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças. “Que estas palavras que eu hoje te ordeno estejam em teu coração! Tu as inculcarás aos teus filhos, e delas falarás... Tu as atarás também à tua mão, como um sinal, e serão como um frontal entre os teus olhos; tu as escreverás nos umbrais de tua casa, e nas portas.”(Dt 6, 6-9)
Em terceiro lugar, a esta exclusividade de Deus na resposta amorosa do ser humano, se soma a novidade de Jesus ao estabelecer o mandamento do amor fraterno ou ao próximo no contexto e na esfera do amor de Deus. O amor universal e sem fronteiras é uma grande novidade do Evangelho: “Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas.” (Mt 22,40) Esta centralidade marcada por Jesus segue valendo hoje como ontem. O que assombra no texto evangélico é a autoridade de Jesus ao afirmar que não há preceitos como estes, porque neles se apoiam toda a lei e os profetas. Ele disse que o segundo mandamento, do amor ao próximo é “semelhante” ao primeiro, do amor a Deus, dando a entender uma ordem lógica, mas sem diminuir sua importância. O que importa é que amemos as pessoas como amamos a Ele; diríamos até que não é possível amar a Deus mais que às pessoas.
“Das palavras de Jesus conclui-se que o cristianismo, isto é a mensagem e o seguimento de Cristo, é fundamentalmente, amar, encontrar-se com Deus no amor através da fraternidade com os nossos semelhantes. Amar a Deus sem amar o homem é uma utopia religiosa, pois Deus encarna no irmão. Jesus acentua o amor como meta, contexto e essência de toda a lei de Deus e das suas aplicações concretas, os mandamentos. O amor é o que dá valor e consistência à observância legal, e não o contrário, porque o amor é o espírito que dá vida à letra da lei do Senhor.” (Caballero, 2001.) O que nos faz ser cristãos de verdade, por nossa vida e não apenas de nome, só de palavra, é esta peculiar relação amorosa entre Deus e nós, de nós com as outras pessoas, que são amadas e amam a Deus.
Na vida prática amar a Deus diretamente e através de Jesus resulta mais fácil que fazendo através do próximo. “Muitas vezes a palavra ‘próximo’ é tida em sentido bastante abstrato. Próximo é quem vive, quem está ao meu lado. Pode estar a meu lado por escolha minha ou dele; pode estar por razões de trabalho ou moradia; pode estar por acaso ou forçado; por muito ou pouco tempo; pode ter meu sangue ou ser um estranho; pode ter a mesma religião ou não. Não há diferença.” (ibid. Neotti.) O amor ao próximo engloba limitações e desacertos; requer uma percepção diferente, original, capaz de filtrar o que existe de bom em cada pessoa. Faço-me próximo do outro acercando-me, pondo-me a seu lado, a seu serviço, qual o samaritano (cf. Lc 10,29-37).
Hoje, dia da Jornada Mundial das Missões a Palavra de Deus nos fala do essencial da missão de evangelizar que é o amor. João Paulo II dizia que o amor é e será sempre a força da missão, o espírito de toda a atividade missionária. Porque o amor é o verdadeiro testemunho que o Senhor nos envia a dar ao mundo. Celebrar este dia tem a finalidade de fazer-nos refletir sobre como vivemos nossa vocação missionária, quer dizer, se verdadeiramente estamos preocupados, que todas as pessoas vivam uma vida autenticamente humana e digna, e se estamos sendo construtores da fraternidade, da paz e da solidariedade, que são valores do Reino de Deus. E isto se pode fazer em qualquer dos cinco continentes, e também em nosso próprio povo, entre os nossos vizinhos e conhecidos.
Fala-se muito hoje em Evangelização. Evangelizar é ato de amor, é revelar a boa nova em todas as perspectivas, é humanizar. Amamos o que consideramos bom. Amando o irmão, procurando que ele tenha vida digna, nos encontraremos com Deus e com seu amor. A esta tarefa, a Igreja chama de Evangelização. Podemos hoje nos sentir, pela Igreja de Jesus, enviados a evangelizar. Assim disse Jesus a seus discípulos, a sua Igreja, a cada um de nós cristãos batizados: “Como o Pai me enviou eu vos envio.” (Jo 20,21) E neste envio vai também toda a força necessária para fazer que a boa nova do evangelho se converta em fonte de alegria e felicidade para todas as pessoas, e em condições dignas de vida para aqueles irmãos e irmãs que não as têm. Porque se há algo que fortalece verdadeiramente nossa fé é quando a fazemos testemunho de vida, quando a damos. E quando reforçamos a relação de amor entre Deus e nós, e amor fraterno entre nós e as demais pessoas que são também igualmente  amadas por Deus. Das muitas definições do ser humano, já foi dito que o ser humano define-se também como um ser criado para amar, um ser que ama e precisa ser amado.

Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
Neotti, Clarêncio. Ministério da Palavra, comentário aos Evangelhos dominicais e festivos. Petrópolis, Vozes, 2001.
Vários autores. Comentários à Bíblia Litúrgica, Portugal, Gráfica de Coimbra 2
Caballero, B. A Palavra de Cada Domingo, Ano A. Apelação (Portugal), Paulus, 2001.

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