domingo, outubro 09, 2011

Com que roupa eu vou ao banquete do Senhor

Paróquia Nossa Senhora De Fátima
Campina Grande/PB
Pe. José Assis Pereira Soares

A imagem de uma refeição, um banquete ou de um “festim escatológico” está por trás da Palavra de Deus deste domingo. Através da refeição festiva, o ser humano supera a dimensão meramente instintiva do “comer e beber” a uma categoria humana e espiritual: fazer um banquete. Dar uma festa, o convidar os amigos a comer e beber na própria casa, sentar à mesa para uma refeição, no presente, anda perdendo seu sentido de comunhão e de partilha; a refeição ora é feita às pressas, ora acontece na frente da TV, cada um com seu prato servido, sem perceber o outro ao lado, sem gestos de partilha. Até as festas, com frequência ainda se realizam em torno da mesa mas, raras vezes, na mesa de casa, com pratos tradicionais, com base em receitas familiares passadas de geração a geração. Hoje, vai-se a restaurantes, tudo afetivamente insípido.
O banquete representa a comunhão de pessoas entre si, que compartilham alimentos, alegria, acontecimentos felizes, amizade, intimidade. No banquete parece que a vida se reconcilia: de dura e até hostil a vida se converte em alegre e pacífica, e por isso se alarga e se saboreia um banquete.
O profeta Isaías (cf. Is 25, 6-10) nos mostra a intenção salvífica de Deus que preparara “para todos os povos, um banquete de carnes gordas, um banquete de vinhos finos, de carnes suculentas, de vinhos depurados... Ele fez desaparecer a morte para sempre. O Senhor enxuga as lágrimas de todos os rostos.” (Is 25, 6.8) A partir deste texto, a ideia de festim messiânico se tornou corrente no judaísmo. “A descrição não pode ser mais sugestiva, fascinante e portadora de esperança. O próprio Senhor preparará este grande festim, para o qual estão convidados todos os povos da terra. Banquete pacífico de confraternização universal em que, respeitando-se as estruturas e diferenças humanas, se reconhecerá a soberania do Senhor, que é como dizer, a sua providência universal. Por causa deste banquete de suculentos manjares e vinhos generosos, o Senhor fará desaparecer as lágrimas, o luto e a tristeza do meio dos homens. Porque tirará dos seus olhos o véu terreno que os impede de ver as realidades divinas. Nascerá assim uma nova ordem das coisas, uma nova escala de valores regerá as relações humanas e divinas, que não mais voltarão a ser cortadas; a morte, assim, deixará de existir.” (Bíblia Litúrgica)
Na verdade em alguns momentos da vida pensamos que nossa existência não tem sido outra coisa, senão “um vale de lágrimas”, sofrimento ininterrupto. São tantos sofrimentos da humanidade! Sofrimento de povos inteiros sujeitos à pobreza extrema, a miséria. Sofrimento de tantos enfermos e doentes incuráveis em estado terminal, sofrimento de milhares de jovens presos nas garras das drogas, da perda de sentido da vida, suicidando-se... Sofrimento de famílias desestruturadas ou desunidas onde não há mais amor nem respeito nas relações familiares... São tantas lágrimas curtidas em tantos sofrimentos! “Uma lágrima, ‘dimá’ em hebraico, é uma palavra composta de sangue ‘dam’, de olho, ‘ayin’. Literalmente a lágrima significa o sangue dos olhos, água do espírito, as lágrimas de uma mulher banham os pés de Jesus (Lc 7,38) e movem seu coração (Lc 7,44).” (Miranda, 2000.) Mas, Deus não está alheio aos nossos sofrimentos. Ele recolhe nossas lágrimas em suas mãos, enxuga nossos rostos, como diz o salmista: “recolhe minhas lágrimas em teu odre!” (Sl 56,9)
Jesus tem consciência desta promessa messiânica de salvação que com Ele esses tempos chegaram e vai utilizar o cenário do banquete para expressar a realidade do Reino. Na parábola evangélica do “banquete de casamento do filho do rei” (cf. Mt 22,1-14) Jesus segue, através de parábolas dizendo aos judeus e às suas lideranças religiosas que eles foram os primeiros convidados, mas não os únicos. Também foram convidados ao banquete do Reino os povos não judeus. E mais, estes, os gentios, serão os primeiros a entrar no Reino, porque escutaram o Filho, a Jesus, e tem-no seguido. Os judeus, em troca, serão os últimos no Reino dos Céus, porque não têm acreditado em Jesus e negaram-no. Esta ideia veio se repetindo na liturgia dos últimos domingos.
Mateus e Lucas (cf. Lc 14,15-24) nos transmitiram esta, que é uma das parábolas mais sofisticadas do evangelho de São Mateus. O texto, por assim dizer, está dividido em duas partes. Na primeira cena um rei prepara um banquete por ocasião do casamento de seu filho, chama alguns convidados escolhidos a dedo. A festa está preparada, mas os convidados se comportaram de modo indigno, recusando o convite do rei e sendo até descorteses com os criados mensageiros ao ponto de os maltratarem e os matarem. O rei então dirigiu o convite a todos os que os criados encontrassem nas esquinas e ruas, maus e bons de modo que a sala do banquete se encheu. (cf. Mt 22, 1-10)
“O ouvinte moderno poderia se escandalizar com um convite que, perante o pouco interesse dos convidados, se torna ameaça. Quem gostaria de receber um convite para uma festa sentindo-se forçado e ameaçado? E quem se é o dono de uma festa que se contentaria com hóspedes que comparecem à força? Por isso será mister não abusar, na explicação, de imagens que têm uma nítida conotação de outra cultura, de outros relacionamentos do soberano com os seus súditos. Importante é ver que ‘tudo está preparado’ (22,4). Aqui está um ponto totalmente fundamental para a interpretação da parábola. Nossa situação, hoje, como no tempo de Jesus, é esta: Deus preparou tudo. Simplesmente, tudo foi operado por ele. ‘Os animais cevados já estão batidos’; é, simplesmente, impossível parar a festa. Esta situação é maravilhosa. O homem que deveria esperar a sentença do Juiz, a criatura, que atemorizada, se prostraria diante do Criador Santo, recebe o insistente convite: ‘vinde às núpcias’... Em Jesus Cristo, na sua pregação, na sua obra e na sua morte, dirigiu-se aos homens o último apelo definitivo para o perdão, para a reconciliação com eles mesmos e com Deus. Aqui aparece a verdadeira dimensão da perversidade de quem, esquecido da voz da consciência, entrega-se às garantias certas, porém... mortais de um mundo que passa.” (Homer e Bouzon, 1978.)
A segunda parte da parábola sobre a “veste nupcial” (cf. Mt 22, 11-14), pensam os intérpretes tratar-se de um acréscimo, talvez uma parábola independente, sobreposta à original dos vv. 1-10.
“Amigo, como entras-te aqui sem a veste nupcial?” (Mt 22,12) O que nos choca, ao menos à primeira vista, nesta parábola é o convidado ser colocado para fora da sala do banquete por não estar vestido com o traje de festa. Se o rei havia ordenado a seus criados que a todos os que encontrassem pelo caminho, bons e maus os convidassem à festa de casamento de seu filho. Por que agora se irrita tanto ao constatar que entre estes convidados há alguém mal vestido e pouco preparado para participar da festa? Não parece lógico exigir que os convidados das esquinas e ruas estejam preparados para o banquete nupcial. Não obstante deveríamos supor que na semiótica da veste com que se quer gerar o texto, todo mundo inclusive os mais pobres, sempre encontraram uma roupa mais decente para ir a uma festa, a um banquete, do contrário não teria sentido os versículos 11-14. Mas a pouca lógica na narração da parábola não deve ocultar-nos a verdadeira intenção da mensagem que Jesus queria transmitir aos seus ouvintes. Não devemos perder de vista que a parábola ele a pronunciou para manifestar a festa da liberdade de Deus que chama a todos que ele encontra.  Mas, o fato do convite: “Tudo está pronto. Vinde às núpcias”, seja para todos, em nenhum caso queria dizer que os convidados possam assistir às bodas sem a preparação devida, sem o “traje de festa”.
Às vezes se reduziu ingenuamente este “traje”, às condições necessárias para receber a comunhão sacramental. Mas é algo muito mais amplo. O convidado que não tinha o traje festivo reflete o cristão que não se reveste das mesmas atitudes e sentimentos de Cristo, não sendo sincero ou coerente. A todos os convidados, aos primeiros e aos últimos, aos judeus e aos gentios, se nos exige para entrar no Reino dos Céus uma disposição interior e exterior adequada, se nos exige, sobretudo, a limpeza de coração, a conversão da alma. Este é o traje de festa.
“Rico e pobre precisam da veste nupcial. Não basta ser batizado para ter direito de participar da comunhão com Deus. a veste nupcial significa a vivência dos valores evangélicos. O próprio Jesus advertiu: “Nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas quem fizer a vontade de meu Pai” (Mt 7,21). A prática dos valores evangélicos nos cobre como uma veste (Ap 19,8), ou, como a pele no corpo. Na carta aos Gálatas, São Paulo tem um capítulo sobre as práticas cristãs e menciona como valores: a caridade, a alegria, a paz, a compreensão, a afabilidade, a bondade, a fidelidade, a mansidão, o autocontrole (Gl 5,22-23). Dentro dessas qualidades estão o desapego, o acolhimento, o perdão, a partilha. Todos são chamados. Deus quer a comunhão com todos. Mas é preciso que nós queiramos participar da comunhão com Deus. E o queremos com o nosso comportamento.” (Neotti, 2001.)
Em que estaria pensando o autor do evangelho de Mateus quando escreveu esta parábola? Certamente em sua própria comunidade. Estaríamos, segundo os estudiosos diante da reconstrução alegorizante da comunidade de Mateus, que viveu a realidade da destruição de Jerusalém (70 d.C), quando o evangelho foi escrito, parecendo esta destruição como uma consequência da recusa frontal ao convite do Senhor. A comunidade podia sentir-se agradecida porque Deus os havia convidado a eles, os de fora, os que não viviam segundo a lei, nem estavam na relação do povo de Deus a entrar em seu banquete, o seu Reino. Sim, tinham razão de sentirem-se agradecidos. Mas, não de sentirem-se superiores aos outros. Aqui residia o perigo. É fácil sentir-se bom, quando alguém é visto como pior. Confundimos o “ser bom” com o “ser melhor” que os outros. Mas, ser bom é encher a própria medida, e não ficar com medidas acima dos outros. Os membros dessa comunidade cristã tão particular tiram consequências novas com o objetivo de saber responder sempre ao convite que o Senhor se lhes faz.
Nem nos tempos da comunidade de Mateus, nos primeiros anos do cristianismo, nem agora podemos pensar que a salvação, a comunhão com Deus, a participação no seu Reino, a entrada na sala do banquete, é problema exclusivo de Deus que convida. Todos os convidados estamos obrigados a responder adequadamente ao convite. “Deus que te criou sem ti, não poderá salvar-te sem ti”, dizia Santo Agostinho.

Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
Vários autores. Comentários à Bíblia Litúrgica, Portugal, Gráfica de Coimbra 2. 
Miranda, Evaristo Eduardo. Corpo, Território do Sagrado. São Paulo, Loyola, 2000.  
Romer, D. Karl Josef; Bouzon, Emanuel. A Palavra de Deus no anúncio e na oração. São Paulo, Paulinas, 1978.
Neotti, Clarêncio. Ministério da palavra, comentários aos Evangelhos dominicais e fstivos, Ano A. Petrópolis, Vozes, 2001.

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