Semana Santa, história de um confronto
Chegamos ao final da Quaresma, caminho de conversão que a Igreja realizou com Cristo até Jerusalém. Desde os primeiros séculos, os cristãos comemoraram esse dia como Domingo de Ramos, o primeiro dia da semana mais sagrada do ano cristão que tem seu clímax na Sexta-feira Santa e no Domingo de Páscoa. “O sexto domingo da Quaresma, ou Domingo de Ramos e da Paixão ocupa um lugar de destaque no conjunto de quarenta dias. Pelo título já se vê que dois aspectos fundamentais se fundem na liturgia deste dia: a comemoração da entrada de Jesus em Jerusalém e a comemoração da Paixão. Sabemos, pelo relato da peregrina Etéria, que os cristãos de Jerusalém, no começo do século V, se reuniam no monte das Oliveiras, às primeiras horas da tarde para uma longa liturgia da Palavra; em seguida, ao cair da tarde, dirigiam-se à cidade de Jerusalém levando ramos de palmeira ou de oliveira nas mãos. Este costume logo foi apreciado e imitado por outras igrejas do Oriente... Quanto à sua difusão, já por volta do ano 600 encontramos o nome do Domingo de Ramos na liturgia do Ocidente...” (Adam, 1982.)
Em nossa liturgia Cristo mesmo se faz presente; na procissão através da cruz que precede a caminhada dos fiéis; está presente no evangelho que se proclama no inicio mesmo da procissão; finalmente, está presente naquele que preside a liturgia processional. Esta procissão é um belo símbolo e realização da promessa de Cristo: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos.” (Mt 28,20) Ele caminha com cada homem e mulher em seu peregrinar pois a vida humana é um caminho no qual descobrimos o valor da cruz. A entrada festiva de Jesus em Jerusalém sugere à nossa reflexão muitos momentos da existência humana. Momentos de alegria, de plenitude, de amizade sincera, de realização pessoal. Momentos nos quais se experimenta mais vivamente o amor de Deus, a proximidade e o carinho de familiares ou amigos, a beleza da vida. Sem dúvida, neste caminhar da existência humana também há momentos de tristeza, de perda, de dor, de fracasso. Uma enfermidade, a morte de uma pessoa querida, uma incompreensão... Tudo isso nos indica que nossa pátria definitiva não se encontra aqui, mesmo que esta vida, seja em si mesma bela e digna de ser vivida, não é senão o inicio de uma vida que já não conhecerá a dor. Tudo isto nos recorda que somos peregrinos e que devemos seguir caminhando sem nos rendermos ao cansaço, à fadiga, ou aos pecados desta vida. Caminhar sempre, avançar sempre para alcançar a felicidade eterna, a “Jerusalém celeste” que, de algum modo, já iniciou nesta terra pela fé em Cristo Jesus.
Jesus e seus discípulos “se aproximaram de Jerusalém e chegaram a Betfagé, no monte das Oliveiras…" (Mt 21, 1) Neste relato, repetido pelos evangelistas, interagem cenicamente os apóstolos, discípulos e o povo simples que o seguia entusiasmado. Na verdade “duas procissões entraram em Jerusalém num dia de primavera do ano 30. Era a semana da Páscoa, a mais sagrada do ano judaico. Uma foi uma procissão de camponeses, a outra um desfile imperial. Vindo do leste, Jesus montou um jumento e desceu o monte das Oliveiras saudado por seus seguidores. Jesus era da aldeia camponesa de Nazaré, sua mensagem era sobre o reino de Deus e seus seguidores eram formados pela classe camponesa. Tinham viajado da Galiléia para Jerusalém, cerca de 160 quilômetros ao norte... Do lado oposto da cidade, vindo do oeste, Pôncio Pilatos, o governador romano da Iduméia, de Judéia e de Samaria, entrou em Jerusalém na frente de uma fileira da cavalaria e de soldados imperiais. O cortejo de Jesus proclamava o reino de Deus; o de Pilatos proclamava o poder do império. Os dois cortejos corporificam o conflito central da semana que levou à crucificação de Jesus... Mateus quando aborda a entrada de Jesus em Jerusalém, explicita a conexão ao citar a passagem: ‘Dizei à filha de Sião: Eis que o teu rei a vem ti, modesto e montado em uma jumenta, em um jumentinho, filho de um animal de carga’ (Mt 21,5, citando Zc 9,9). O resto da passagem de Zacarias detalha que tipo de rei ele será: Esse rei, montado em um jumento, banirá a guerra da terra, não haverá mais carruagens, cavalos ou arcos. Anunciando a paz às nações, ele será um rei de paz. O cortejo de Jesus se contrapunha deliberadamente ao que estava acontecendo do outro lado da cidade. O cortejo de Pilatos personificava o poder, a glória e a violência do império que governava o mundo. O cortejo de Jesus personificava uma visão alternativa, o reino de Deus. Esse contraste – entre o reino de Deus e o reino de César – está no centro não somente do evangelho, mas da história de Jesus e do inicio do cristianismo. O confronto entre esses dois reinos continuou durante a última semana da vida de Jesus. Como todos sabemos, a semana terminou com a execução dele pelos poderes que governavam seu mundo. A semana santa é a história deste confronto... Queremos alertar contra algum possível equivoco quanto ao conflito que levou à crucificação de Jesus. O conflito não era de Jesus contra o judaísmo. A maioria dos estudos do último meio século, em especial nos últimos vinte anos, enfatizou corretamente que devemos entender Jesus dentro do judaísmo, e não contra o judaísmo, Jesus fazia parte do judaísmo, não estava à parte dele. O conflito também não estava relacionado a sacerdotes e sacrifício, como se a paixão primária de Jesus fosse um protesto contra o papel dos mediadores sacerdotais ou contra o sacrifício animal. Pelo contrário, seu protesto era contra um sistema de dominação e legitimado em nome de Deus, um sistema de dominação radicalmente diverso do que seria o já presente e vindouro reino de Deus, o sonho dele. Jesus não era contra o judaísmo nem o judaísmo contra Jesus. Na verdade, a voz de Jesus era uma voz judaica, uma das várias vozes judaicas do século I, falando do que significava a lealdade ao Deus do judaísmo. E, para os cristãos, ele é a voz judaica decisiva. Dois cortejos entraram em Jerusalém naquele dia. A mesma pergunta, a mesma alternativa, está diante dos fiéis a Jesus hoje. Em que cortejo estamos? Em que procissão queremos estar? Essa é a questão do Domingo de Ramos e da semana que está para ser relatada.” (Borg; Crossan, 2007.)
Nos anos setenta do século passado, quando quiseram transformar Jesus de Nazaré em um revolucionário ao estilo de então, se interpretou a entrada triunfal em Jerusalém quase como um ataque guerrilheiro contra o poder romano estabelecido. As consequências políticas dessa insurreição foram a condenação, tortura e a execução de Jesus. A verdade é que esta teoria não tem a menor possibilidade histórica, porque a guarnição romana vigiava tudo. Qualquer problema de ordem pública era dominado em seguida com enorme violência. Pelo contrário, os atos de conteúdo religioso – procissões, romarias com cantos e as típicas subidas ao templo – não produziam inquietação alguma e deixavam que se desenvolvessem, mesmo que algumas vezes produziam-se algum tumulto pela multidão que participava. Os militares romanos já sabiam o que se trazia nas mãos nessas manifestações e não permitiria nada parecido com armas para um ataque revolucionário ou terrorista qualquer. Outros tratadistas do mesmo time revolucionário relacionaram também a atitude guerrilheira de Jesus com a expulsão dos mercadores do Templo. Mas Jesus quis deixar claro que seu gesto era pacífico e não político. Entrou em Jerusalém montado num burrinho e não no lombo de um orgulhoso e imponente cavalo branco, como o fez o governador Pôncio Pilatos ou reis celebrando seu triunfo, rodeado de sua corte. O cortejo real era festivo e próprio de uma romaria. As pessoas saudavam Jesus – com ramos de oliveira – sinal de paz. E para as forças de ocupação romana o assunto em nada lhes importava. No entanto, assim não se comportou o conjunto das autoridades religiosas de Israel, que entenderam perfeitamente que essa entrada era religiosa e que carregava um forte anseio de paz desejado pelo povo, mas odiado pelo sistema oficial do Templo, já que importaria toda uma mudança. E foi essa entrada triunfal o que precipitou a perseguição e morte de Jesus. Jesus pedia a volta à religião original do Amor que o Pai esperava. Os fariseus e saduceus alimentavam um sistema social, político e com formas religiosas, que nada tinha a ver com a missão de Jesus.
Na liturgia deste domingo duas expressões nos chamam a atenção: A primeira, “Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos céus!” (Mt 21,9) a lemos no evangelho, antes da procissão. Pouco tempo depois, na leitura da paixão, vemos que a mesma multidão que aclamou a Jesus, como Filho de Davi! pede agora a Pilatos que o crucifique: “Que farei com Jesus, que chamam de Cristo? Todos gritaram: Seja crucificado!”(Mt 27,22) Desgraçadamente, não podemos estranhar a atitude daquela multidão que se deixou manipular. Aclamaram Jesus como Filho de Davi e o fizeram porque viam-no como um profeta que vinha salvá-los; e pediram a Pilatos que o crucificassem movidos pelos interesses dos chefes e lideres do povo que viam em Jesus de Nazaré uma pessoa que denunciava suas hipocrisias, sua prepotência, e seus egoísmos e interesses políticos e religiosos. Deixaram-se convencer e manipular ingenuamente por pessoas que não buscavam o bem do povo simples e humilde, mas seus próprios interesses egoístas. Também hoje, nós cometemos frequentemente esse mesmo erro.
Mas, a procissão se dirige a Cristo que se imolará no altar, pois é também Domingo da Paixão. A proclamação da paixão, este ano segundo Mateus (cf. Mt 26, 14-27,66), nos faz ver o caminho de afrontas que Jesus teve que suportar por amor a nós pecadores. Na Paixão segundo Mateus não se suaviza tudo o que seja violência e dramaticidade, como o faz Lucas. Ai estão os sofrimentos, açoites, a coroa de espinhos e o longo e dramático relato da crucifixão. Mas, os três evangelistas ressaltam o senhorio absoluto de Jesus, que dá permissão para sua prisão e responde com autoridade aos sumos sacerdotes. E, sobretudo, resplandece a infinita misericórdia do Senhor em tais momentos, chamando o traidor por seu nome, curando a orelha ferida do servo do pontífice, perdoando aos que lhe crucificam, e prometendo o paraíso ao bom ladrão. Jesus se manifesta assim como reflexo do amor e da misericórdia do Pai para conosco. Por isso é importante hoje, por trás da bênção e alegre procissão dos ramos, ler e meditar na íntegra a Paixão de nosso Senhor.
O nosso olhar, portanto, se dirige com amor a Cristo, cordeiro imolado que deu sua vida em nosso resgate. São Bernardo comenta que na procissão se representa a glória celeste, enquanto que na Missa se faz claro qual é o caminho para chegar a ela. Se na procissão vemos com clareza a meta a que devemos chegar, quer dizer, a pátria do céu, a paixão nos faz ver o caminho e as condições que são necessárias: a perseguição, a obediência, a paixão dolorosa. O ideal seria descobrir ambas as realidades: pátria celeste e caminho para chegar a ela, em sua dimensão cristológica. Cristo que caminha conosco, Cristo que caminha diante de nós abrindo-nos as portas do céu, Cristo que caminha, sofre e padece em nós que somos seu corpo.
Hoje iniciando esta Semana Santa descubramos em toda sua profundidade os contrastes e a dramaticidade da vida humana e do ser humano diante de Deus. Drama de vida e de morte, de traição e de eterna felicidade. Nós, como os discípulos de Jesus e os judeus, às vezes temos aclamado a Cristo com entusiasmo como Rei e Senhor de nossas vidas e depois o temos traído e o abandonado tantas vezes, nos convertendo, por nossa debilidade e em nosso pecado em protagonistas da Paixão, tal como a escutamos no Evangelho. Insisto que diante da Paixão de Jesus não podemos ser indiferentes ou meros espectadores passivos. Cada um de nós estávamos ali, entre aqueles judeus ou aqueles discípulos, porque Jesus oferecia sua vida também por cada um de nós. Os cristãos deveríamos ler e reler os relatos da Paixão de Jesus não somente na semana santa, mas continuamente, meditando e atualizando na fé o seu significado.
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
Adam, Adolf. O Ano Litúrgico. São Paulo, Paulinas, 1982.
Borg, Marcus J.; Crossan, Joh Dominik. A última Semana, um relato detalhado dos dias finais de Jesus. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2007
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