Estamos na metade da Quaresma, que segue sendo esse simbólico itinerário de nossa conversão para Deus e para os irmãos, caminho de purificação que nos ajuda a renovar a graça do nosso Batismo na noite santa da Páscoa. “Com a reforma litúrgica do Vaticano II, a quaresma recobrou o significado que teve a partir do século IV, quando foi organizado o catecumenato de forma estável. Precisamente em relação com a iniciação cristã, a quaresma foi e torna a ser um método de revisão e aprofundamento da fé, baseado na contemplação bíblica de passagens centrais... o terceiro, quarto e quinto domingos da quaresma, com leituras do quarto evangelista, é a ‘quaresma joânica’. As três leituras de João (4; 9, 11), próprias do ciclo A, ajudam a compreender a pessoa de Jesus que é a água viva, luz do mundo e verdadeira vida... A renovação catecumenal atual orienta muitas comunidades cristãs a viver anualmente o espírito da quaresma.” (Floristán, 1995.)
Assim como nos domingos anteriores que tiveram como temas: a tentação no deserto e a transfiguração na montanha; o grande tema que marca este terceiro domingo da quaresma batimal é a água, símbolo da vida e a sede de Deus. Neste domingo, centrado no simbolismo da água, a experiência dela jorrando da rocha golpeada por Moisés para saciar a sede do povo no deserto (cf. Ex 17,3-7) mas, sobretudo, o encontro de Jesus com a samaritana (cf. Jo 4,5-42) revela passo a passo toda a dimensão pascal, por esse motivo desde as origens das comunidades cristãs, este episódio assume uma importante função na catequese batismal: a experiência do encontro pessoal com Jesus que suscita a fé e abre a uma procura do sentido da própria vida e de Deus, desagua em uma pergunta pertinente e crucial para os nossos dias: Quais são as fontes que alimentam nossa vida espiritual?
O povo de Israel após ter sido libertado da escravidão do Egito, guiado por Moisés começa um longo caminho pelo deserto do Sinai para chegar à “terra prometida”. No inicio da caminhada foi testemunha de grandes sinais, mas depois vieram as dificuldades próprias do deserto: cansaço, fome, serpentes venenosas... e sede. O livro do êxodo relata dois episódios relacionados com a água: No primeiro, das “águas amargas” (Ex 15,22-27), Deus pôs à prova o povo, em hebraico “Massá” (tentação); no segundo (Ex 17, 1-7) é o povo que pretende por à prova o Senhor, “Meribá” (discussão); Em “Massá” duvida-se da presença do Senhor no meio do seu povo, já em “Meribá” a falta d’àgua leva o povo revoltado a duvidar da autoridade de Moisés e discutir com ele: “Por que nos fizeste subir do Egito, para nos matar de sede a nós, a nossos filhos e a nossos animais?” (Ex 17,3) Para o povo, Deus não o teria conduzido para a vida e sim para a morte no deserto. Moisés clama a Iahweh e caminha até a rocha do Horeb, levando consigo o cajado dos prodígios. Iahweh lhe promete que da rocha brotará água suficiente para acalmar a sede do povo. Estas águas de Massá-Meribá mereceram ser lembradas em muitos lugares na Bíblia tornando-se até uma lenda rabínica que dizia que a “rocha do Horeb” os acompanhou ao longo do caminho, proporcionando-lhes água. Realidade ou ficção, nem os lugares, nem o tempo aqui têm valor algum, o importante é o tema: Deus que assiste seu povo em sua caminhada pela história.
“A experiência de Israel que sai do Egito se repete na vida de todo cristão. Este também, como os israelitas, é alguém que se deixou convencer a abandonar a ‘terra da escravidão’, a vida antiga; tornou-se catecúmeno e aceitou o Batismo. No começo tudo parecia fácil. Pensava: A água do Batismo lavou todas as minhas más inclinações e os meus maus desejos, não terei mais dificuldades, o Espírito me conduzirá sempre e somente para o bem, serei eternamente feliz. Deus me protegerá de todas as desgraças, não terei mais doenças, problemas na família, acidentes no trabalho ou nas estradas. Começaram depois os desencantos: continuaram as dificuldades de sempre. Até os membros da comunidade cristã não são aquelas pessoas exemplares que imaginava. A esta altura, o cristão, como o povo de Israel, começa a duvidar que Deus realmente acompanhe a comunidade na sua caminhada, que proteja, que defenda, que a abençoe, como muitas vezes lhe foi dito. Fica matutando. Talvez a opção de me tornar cristão não tenha sido acertada, não tenho outra saída a não ser voltar à vida de antes ou submeter Deus à prova, exigir dele que prove, com sinais e milagres, que é realmente fiel às suas promessas... nesta horas o cristão deve somente pensar: também me encontro como Israel... em Massá-Meribá.” (Armellini, 1998.)
Recordando-nos momentos da vida de Cristo, o evangelho de João, nos oferece uma das cenas e diálogos mais enternecedores e mais bem construídos do quarto evangelista; o relato, em seu vivo e intenso diálogo em torno do poço de Jacó. Assim como o deserto ou a montanha, o poço, cenário do encontro de Jesus com a samaritana, tem um grande valor simbólico, representa o Antigo Testamento. Jesus é maior do que Jacó; a água do poço de Jacó podia saciar a sede física; mas Jesus oferece uma água de outra natureza. Uma água que pode satisfazer plenamente a pessoa humana.
“Antigamente o poço era o lugar onde as pessoas se encontravam. Junto ao poço se encontravam os pastores que vinham matar a sede dos seus rebanhos; junto ao poço paravam os comerciantes com suas mercadorias para aguardar os clientes; ao poço vinham as mulheres para buscar água, até o poço vinham os namorados procurando uma companhia. A Bíblia relata muitos desses encontros junto ao poço (Gn 24,10-25; 26, 15-25; 29,1-14; Ex 2,15-21).” (ibid. Armellini, 1998.)
Todos já escutamos alguma vez esta narração do encontro de Jesus com a samaritana, no entanto, nem sempre abarcamos todo seu significado e profundidade. Jesus passa por um território de herejes, como eram condiderados os samaritanos pelos judeus ortodoxos. É uma velha história de ódios e rancores por causa da religião. “Após a destruição da Samaria, capital do Reino do Norte, no ano 722 a.C., os israelitas que não foram exilados misturaram-se com os colonos trazidos pelos assírios, dando origem aos samaritanos (cf. 2Rs 17,24-41). Por seu sincretismo religioso, os samaritanos eram desprezados pelos judeus que evitavam qualquer contado com eles. Mas Jesus passa por cima de todas as barreiras e preconceitos raciais e pede água à mulher samaritana.” (Bouzon, 1978.)
Um judeu religioso devia evitar todo contato com os samaritanos, pois eles eram não somente impuros, mas herejes, e o que menos podia pensar era pedir a eles algo para comer ou beber (cf. Eclo 50,25-26; Lc 9,52; 10,33; Mt 10,5). Jesus, “fatigado da caminhada, sentou-se junto à fonte. Era por volta da hora sexta. Uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de beber!” (Jo 4,6-7) Jesus descansa na beira do poço, está cansado e tem sede. Espera que chegue alguém e lhe dê de beber, pois não tem com que tirar a água. Mas, quando chega aquela mulher samaritana, ele mostra uma sede diferente, um forte desejo de livrar essa mulher de seu pecado. “Como, sendo judeu, tu me pedes de beber, a mim que sou samaritana?” (Jo 4,9) diz a mulher totalmente surpresa. O diálogo é saboroso, é um diálogo com alguém maldito, carregando às costas o peso de preconceitos seculares, de seus amores vazios, de suas infidelidades, desilusões e insatisfações como o cântaro vazio às suas costas. O “cântaro” também representa aquilo que nos dá acesso às propostas incompletas de felicidade que a modernidade nos oferece. Jesus oferece em troca à samaritana a “água viva”: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é que te diz: Dá-me de beber, tu é que lhe pedirias e ele te daria água viva!”(Jo 4,10) Então vai acontecer uma inversão total, a samaritana é quem passará a ter sede espiritual e pedirá desta “água viva”.
A expressão “água viva” no Antigo Testamento significava: os valores da vida, a revelação, a sabedoria divina e a Lei (cf: Jr 2,13; Zc 14,8; Ez 47,9; Pr 13,14; Is 44,3; Jl 3,1). Em nosso caso, em troca da água do poço, Jesus oferece água viva, que segundo João é o espírito que dá a vida eterna (cf: Jo 7, 37-39). Aí ela vai abandonar o “cântaro”, significa que a samaritana vai romper com todos os esquemas de procura de felicidade egoista, parcial, incompleta. E nós estamos dispostos a abrir o nosso coraçao ao Espírito que Jesus nos oferece e que exige uma vida nova?
Com essa dinâmica de constrastes, a teologia Joânica desta passagem emblemática, propõe uma religião nova e um culto novo em Espírito e verdade: “Vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade.”(Jo 4,23) O Espírito dará a conhecer qual é o culto que tem sentido: o conhecer a Deus e o adorá-lo como Pai. Pois os judeus e os samaritanos adoram um deus que eles mesmos criaram a seu modo; o deus que justifica seus ódios e rancores. Essa religião, que muitas vezes segue sendo a dinâmica de nossas religiões atuais é um contra-Deus e anti-evangelho. Hoje, pois, também podemos aprender muito com este evangelho joânico. Esse não passar de lado pelo terreno, pelo mundo ou a vida dos considerados “malditos”; esse pedir para dar e oferecer em nome do Deus vivo a felicidade e a vida vrdadeira... é o próprio da religião de Cristo.
São muitos os desafios que esta perícope evangélica nos sugere. O relato nos mostra um Jesus que neste caso não é um simples judeu, mas o Logos de Deus, que fala e dialoga com uma mulher, que representa um povo com suas influências sincretistas, mas afinal uma mulher, que descobre algo novo que vem de Deus. E então tudo muda... se deixam de lado histórias passadas, regras que prendem o coração e a alma do povo religioso... e fazem possível descobrir a Deus como Pai e a Jesus como salvador.
Em nosso caminho de conversão é muito importante que tenhamos sede, sede de Deus. A samaritana ia todos os dias ao poço por causa da sua sede. A água do poço é o símbolo de todas as satisfações materiais, de todos os prazeres que procuramos, na esperança de encontrar neles a própria felicidade, mas no fim são águas amargas que deixam sempre muito vazio e muita desilusão, muito amargor na boca. Mas, o problema mais grave das pessoas hoje é que já não sentem mais sede de Deus, decidiram viver sem a necessidade de Deus. A pessoa que não sente sede de Deus, não busca a Deus, busca aplacar sua sede em outras fontes distintas de Deus (a mentira, o roubo, a corrupção, o adultério...). Sede da alma, sede psicológica sempre teremos, desde o momento mesmo em que começamos a sentir e a pensar. Mas, nem toda sede da alma é sede de Deus e, quando não é Deus o que sacia nossa sede, intentamos saciá-la em mananciais efêmeros e quase sempre contaminados. Nascemos sedentos de água física, da água que tira a sede do corpo e também nascemos sedentos de água psicológica e espiritual, da água que sacia a sede da alma. Passamos a vida buscando mananciais onde saciar a sede da alma. A sede do corpo podemos saciá-la aqui, mas um dos grandes problemas dos cristãos, neste momento, é, como despertar a sede de Deus, a sede da alma e saciá-la. É uma tarefa e uma missão difícil.
“Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede.” (Jo 4,15) disse a samaritana. Dá-me dessa água... também nós dizemos, Senhor. Nós, sedentos vos rogamos que nos dês de beber a “água viva” que vós prometestes. Faz que se cumpra em nós vossa palavra: "a água que eu lhes der tornar-se-á nele fonte de água jorrando para a vida eterna.” (Jo 4, 14)
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
Armellini, Fernando. Celebrando a Palavra, Ano A. São Paulo, Editora Ave Maria, 1998.)
Floristán, Casiano. Catecumenato, história e pastoral da iniciação. Petrópolis, Vozes, 1995.
Bouzon, Emanuel; Romer, Karl Josef. A Palavra de Deus no anúncio e na oração. São Paulo, Paulinas, 1978.
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