O
caminho que abre as portas da casa do Pai
O deserto da
Quaresma caminha para o seu fim, a conversão, começo de uma vida nova como a do
povo de Israel. Enfim, após a longa travessia do deserto o povo chegou à terra prometida. Atrás ficaram os
longos anos de caminhada sem rumo pelo deserto. Também, no distante horizonte
do tempo, se perdeu a escravidão e a opressão do Egito. Agora cessou sua vida
de “judeu errante”, agora o povo descansará na posse dessa terra que Deus lhe
deu e se alimentará do trigo novo e dos primeiros frutos
de terra de Canaã (cf. Js 5,10-12).
A Liturgia da Quaresma nos recorda as diversas etapas da História da
salvação. A entrada em Canaã constitui uma nova e muito importante etapa,
sublinhada pela celebração do rito da circuncisão e da festa da Páscoa.
Em Guilgal acamparam os israelitas para celebrar a Páscoa, a primeira
dentro dos confins da terra tão sonhada. Terminou o tempo
do deserto, da escravidão, Deus
libertou seu povo e este celebra agradecido. A terra generosa deu seu fruto. Com
uma colheita abundante começou um novo estilo de vida; cessa a peregrinação e a
etapa da vida nômade de pastores pelo deserto, e começa a vida sedentária como agricultores.
Também terminou o tempo do deserto e seu alimento, o maná concedido providencialmente
pelo Céu. A frente está a terra de Canaã que, de uma maneira natural e estável,
assegurará ao povo o alimento necessário. A Páscoa é uma
festa da unidade, da alegria: Deus cumpriu sua promessa e hoje seu povo deve
fazer-lhe uma festa.
Neste IV Domingo nos encontramos no coração da
Quaresma que atualiza em nós
esses acontecimentos que nos pertencem de certo modo, pois é como o passado de
nossa história comum, prefiguração da festa preparada pelo Pai nos tempos
messiânicos.
Caminhamos jejuando pelo deserto, subimos na oração a montanha e
seguimos pelos caminhos da conversão. Caminhamos e chegamos confessando nosso
pecado à Casa da Misericórdia, casa do perdão e da reconciliação onde nosso
Pai-Deus nos espera.
Aproxima-se a Páscoa, a que realmente nos livra da mais terrível
escravidão, a do pecado. Ante essa libertação que já estamos “pregustando”, no
abraço acolhedor do Pai, haverá de brotar em nosso coração um canto de gratidão
e de alegria.
Na “parábola do filho
pródigo” (cf. Lc 15,
11-32), título
discutível para muitos que a interpretam e propõe chamá-la de “parábola do Amor
do Pai”. A alegria do perdão transborda e se torna
festa; o pai grita para todos: “Comamos e festejemos... era preciso que
festejássemos e nos alegrássemos!” (vv. 23.32)
Já se escreveu tanto sobre esta narração. Se poderia recorrer a
hermenêuticas sofisticadas. Há livros maravilhosos a nível literário,
exegético, teológico e espiritual comentando esta parábola. Há textos clássicos
de escritores e pregadores que ressaltam e descrevem a verdadeira harmonia
desta perícope bíblica, sem duvida, um dos relatos
mais belos dos evangelhos, que nunca cessa de nos comover todas as vezes que o
ouvimos ou lemos sugerindo-nos sempre novos significados.
A história como
tal, é muito simples em seu desenvolvimento: Um jovem decide viver sua vida em
outro lugar, longe da casa paterna. A sua situação se torna penosa quando sem
recursos, numa terra estranha e diante de uma grande fome ele se vê obrigado a
trabalhar, entrando em si mesmo começa a refletir sobre sua condição e sobre o
que perdeu. Vendo-se fora da casa de seu pai toma consciência da sua condição
de escravo e decide voltar para casa. A reação do pai é inesperadamente
acolhedora e generosa no perdão.
Os ouvintes de
Jesus, fariseus e escribas (v.2), logo identificaram o pai da
parábola com Deus, mas não conseguiam entender nada, porque a ideia que se
tinha de Deus era parecida à do pai de família daquele tempo: distante,
autoritário, mais preocupado com a justiça que com o perdão. Mesmo quando em
particular Jesus explicou a seus discípulos o verdadeiro significado da
personalidade terna e amorosa do pai do relato, também custaram a entender como
esse pai, portador da suprema autoridade havia perdido seu porte e dignidade,
para abaixar-se e aceitar o pecado de seus dois filhos.
Esta parábola “não é uma alegoria, mas uma
história da vida. O pai não é Deus, mas um pai terreno. Todavia, através de
algumas expressões, reluz que ele, pelo seu amor, é imagem de Deus... A
parábola descreve com vigorosa simplicidade: Assim é Deus, tão bondoso, tão
gracioso, tão cheio de misericórdia, tão superabundante no amor. Ele se alegra
com a volta do perdido como o pai que organiza a festa de alegria...” (Jeremias,
1980.)
Durante muito tempo nossos teólogos e pregadores nos falaram de nosso
Deus como de um Deus juiz castigador e justiceiro. O medo do inferno era o
principal argumento que muitos pregadores inflamados lançavam mão para
convencer seus ouvintes da necessidade de não pecar. Pois, o pai da parábola
não atuou assim; sua justiça não foi uma justiça vingadora, mas uma justiça
misericordiosa. A justiça do pai misericordioso não foi motivada pela conduta
do filho, mas sim pelo imenso amor de seu coração de pai. O amor do pai foi
muito maior que o pecado do filho. È que o amor de Deus sempre é maior que
nossos pecados. Isto não é um convite a abusar do amor de nosso Pai-Deus; e sim
um convite a converter-nos a este amor.
“O pai da parábola é o sinal da fidelidade
do amor, que espera e se comove, que vê bem longe o filho que retorna e corre
ao seu encontro, que compreende e não quer perder nenhum dos seus filhos, ainda
que – ao que parece – sempre haja um que lhe escape ou que duvide de seu afeto.
Sempre existe uma parte de nós que duvida, que talvez tema, que sente um
estranho medo do amor, que prefere concluir que não recebeu amor suficiente
para continuar a esmolar compreensão e não se sentir obrigado a corresponder ao
amor com mais amor.” (Cencini, 2002.)
O filho mais velho, no fundo, não quer que seu pai seja pai, mas sim, patrão
ou juiz sem misericórdia. E aí vem o que parece ser o mais importante da
parábola: que se tenha organizado uma “festa” para um irmão perdido, e assim o
filho mais velho não está disposto a participar nela. Jesus está falando de Deus
e é a forma de contestar escribas e fariseus que se escandalizam d’Ele dar
oportunidade aos publicanos e pecadores (v.1): o perfil de Deus
que Jesus revela é o do Pai que vendo ao longe o filho que volta para casa, sai
ao seu encontro para tornar menos penosa e mais humana sua conversão, sua volta.
Esta é sua significação última e definitiva. Estaríamos nós dispostos a entrar
nessa festa?
Em quantos
momentos, consciente ou inconscientemente, deixamos a segurança da casa do Pai-Deus
para ir à busca de outros “pais”, de outras casas que vão arruinando-nos por
dentro e por fora. E, em quantas ocasiões, depois de ter sido usado por esses “ídolos”,
quando já não somos mais úteis, nos deixam escorados em nossa própria miséria. È
nesses momentos de tragédias pessoais, de crises existenciais, quando novamente
nossos olhos começam a olhar e ansiar pela casa do Pai, sentindo falta de seu
pão, saudades de sua presença, de seus braços ou de seu amparo.
Podemos ver no
“filho pródigo” o modelo do penitente, e aprender com sua atitude e com suas palavras
como nos reaproximar-nos de Deus e voltar a Ele. Claro, que o modo como ele despertou
sua consciência não é um exemplo para nós, pois ele apenas sentiu falta do pão
da casa de seu pai (cf. vv. 16-17),
foi quando a fome chegou e ele se encontrou em situação de mendicância que sua
alma despertou e percebeu, talvez com remorso, os caminhos que o haviam
conduzido a essa situação. Mas este é só um dos caminhos em que a voz de Deus
se faz escutar. Há muitas outras experiências que podem levar-nos ao
arrependimento manifestado por esse penitente. Uma grande enfermidade, a morte
repentina de alguém muito próximo, uma calamidade inesperada, uma palavra de
advertência ou correção... Em alguns desses casos nossa atenção se dirige a contemplar
a distância com qual o pecado nos separa de Deus, ou o bem perdido e o risco
que significa expor-nos a permanecer longe d’Ele ou em rebelião contra Ele. Com
certeza, com esta cena Jesus quis nos mostrar como se expressa o arrependimento
sincero e como o Pai o recebe. O penitente, o filho pródigo, se sente
moralmente culpado de sua ação e não culpa a ninguém para justificar-se. O pecado
não tem direito de esconder-se por trás de artifícios, pois é o pecador sempre
responsável por seus pecados e seu único recurso é o de confessar com coragem e
verdade: “Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado
teu filho...” (v. 21) Assim se revela
a beleza da humildade. A confissão humilde da culpa, o sentimento de vergonha e
arrependimento sincero e a submissão à autoridade de Deus. Isso nos faz reconhecer
inconfundivelmente a penitência como o caminho que nos abre as portas de nosso Pai
e as do seu coração misericordioso, através do sacramento da Penitência e da
reconciliação.
“O homem, - cada um dos homens – é este filho pródigo: fascinado pela
tentação de se separar do Pai para viver de modo independente a própria
existência; caído na tentação; desiludido do nada que, como miragem, o tinha
deslumbrado; sozinho, desonrado e explorado no momento em que tenta construir
um mundo só para si; atormentado, mesmo no mais profundo da própria miséria,
pelo desejo de voltar à comunhão com o Pai... O que nesta parábola sobressai
mais é o acolhimento festivo e amoroso do pai ao filho que regressa: imagem da
misericórdia de Deus sempre pronto a perdoar [...] A parábola do filho pródigo
é, antes de mais, a história inegável do grande amor de um Pai – Deus – que
oferece ao filho, que a ele retorna, o dom da reconciliação plena. [...] A luz desta inesgotável
parábola da misericórdia que apaga o pecado, a Igreja, acolhendo o apelo que
nela está contido, compreende a sua missão de empenhar-se, seguindo as pegados
do Senhor, pela conversão dos corações e pela reconciliação dos homens com Deus
e entre si, duas realidades que estão intimamente conexas.” (João
Paulo II, 1984.)
A Confissão é um caminho concreto para
nos reconciliarmos com nós mesmos e com os outros, para experimentarmos sempre
de novo a conversão e vivenciarmos Deus como aquele que nos ama incondicionalmente.
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de
Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002
Jeremias, J. As
parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1980.
Cencini, Amedeo.
O pai pródigo, história de uma vocação perdida e reencontrada. São Paulo, Paulinas,
2002.
João Paulo II,
Reconciliação e Penitência, exortação apostólica pós-sinodal. São Paulo,
Paulinas, 1984.
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