No domingo passado,
Marcos (cf. Mc 6,30-34) descreveu a atitude
de Jesus ao ver a multidão: Ele “ficou tomado de
compaixão por eles, pois estavam como ovelhas sem pastor. E começou a
ensinar-lhes muitas coisas.” (v. 32) Essa “grande multidão
o seguia, porque tinha visto os sinais que ele realizava”. (Jo 6,2) É uma numerosa multidão, necessitada e faminta que
preocupa Jesus. Para descrever a sua preocupação e o seu gesto profético de
alimentar esta multidão, a Liturgia prefere dar a palavra ao evangelista João (cf. Jo 6,1-15) pois neste evangelho o sinal da
multiplicação dos pães tem em Marcos (cf. Mc 6,30-54) o texto paralelo mais próximo e também porque nos
próximos domingos o autor do IV
Evangelho vai continuar a refletir sobre este sinal através do sermão sobre o “pão
da vida” (cf. Jo 6,29-59), uma das obras mestras, de grande
importância teológica e catequética de São João, sobre o sacramento da
Eucaristia, já que ele não narra a última Ceia como instituição da Eucaristia.
A multiplicação dos
pães e dos peixes é um fato narrado seis vezes no Novo Testamento: Lc
9, 10-17; Mc
6,30-44 e 8,1-1; Mt 14,13-21 e 15,32-39; Jo 6,1-15. A tradição cristã primitiva deu a esta
passagem grande importância. João apresenta Jesus como o anfitrião de uma maravilhosa
refeição que Ele oferece àqueles que fatigados o seguem. Não é fácil determinar
em que consistiu historicamente o fato, só sabemos que a comunidade cristã pós-pascal primitiva o reinterpretou em chave
cristológica e em chave eucarística.
Em chave
cristológica a multiplicação dos pães está em conexão com a alimentação
milagrosa do povo no deserto (cf.
Ex 16) e a alimentação milagrosa que o profeta Eliseu ofereceu a cem homens com
vinte pães de cevada (cf. 2Rs 4,42-44). A
comunidade primitiva fez isto com a intenção de apresentar Jesus como o profeta-rei-Messias, o bom pastor que prepara
o banquete escatológico da alegria.
Ao repetir o milagre
da alimentação do povo na multiplicação do pães, Jesus era o novo profeta que
possuia em plenitude o Espírito de Deus e fez um gesto que supera Eliseu pondo
em evidência a sua superioridade sobre o maior taumaturgo de todos os profetas.
De fato o contraste é flagrante: com 20 pães Eliseu alimentou 100 pessoas, ao passo que Jesus, com 5 pães,
alimenta 5000.
Em chave eucarística
esta insistência de apresentar este relato parece corresponder a um interesse
motivado pela relação deste milagre com a Eucaristia, podendo observar-se em
todos esses relatos uma grande semelhança de linguagem com os da instiuição da
Eucaristia: a “proximidade da Páscoa” com o dado expresso de que havia “muita
grama” no campo. O fato de comer sentado, pois ordinariamente se comia em pé,
esta era uma prescrição para a ceia pascal e a ação de Jesus nas multiplicações
se descreve com expressões que evocam a ltima ceia: “tomando os cinco pães e os
dois peixes elevou ele os olhos ao céu, abençoou, partiu os pães e deu-os aos discípulos”
(Mc 6,41); e na
segunda multiplicação dos pães se disse literalmente “deu graças”. (Mc 8,6) Portanto, tudo tem fortes ressonâncias litúrgicas,
provenientes certamente da vida das primitivas comunidades cristãs que já
celebravam a Eucaristia.
Portanto, o milagre
da multiplicação dos pães prefigura a Páscoa cristã e a instituição da
Eucaristia. “Em cada Missa celebramos a «multiplicação dos pães». Cristo dá-se
como pão da vida para saciar a fome da comunidade eclesial e de todo o homem.
Celebrar a Eucaristia é um convite a proporcionar sinais de libertação como o
que Cristo oferece; é urgência em partilhar mais e melhor a fé, o amor, o pão e
a riqueza do mundo... Daí que uma celebração autêntica da Eucaristia implique
dar lugar, com urgência, ao compromisso de vida.
Multiplicar hoje o
pão para os pobres supõe fazer primeiro o milagre de amar. Para isso, a fé e o
amor cristão têm de passar da Eucaristia para a arena da vida: a rua, o
escritório, a oficina, as aulas, a casa, a família e as amizades. Amor e fé
devem solidarizar-se, isto é, devem encarnar e atuar na realidade do mundo:
sociedade, política, economia, trabalho e cidadania, para que sejam verdade e
amor em ação.” (Caballero, 2001.)
É interessante
verificar como o IV Evangelho nos transmitiu o relato da multiplicação dos
pães. Ao ver que “estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus”, (v. 4) o que marca muito bem as pretensões teológicas do
evangelista. De fato há alguns elementos que nos recordam momentos da vida do
povo no deserto: a fome, a intervenção de Moisés, o maná… Jesus se preocupa
com a fome dessa gente. É a única preocupação dele diante do povo, assim ele
manifesta a eterna preocupação de Deus Pai com a “fome” do mundo (fome de pão,
fome de liberdade, fome de dignidade, fome de realização plena, fome de amor,
fome de paz…) e a sua vontade de dar a todos vida em abundância… E qual é a
nossa maior preocupação? A pergunta que Ele faz a Filipe continua a nos fazer:
“Onde arranjaremos pão para eles
comerem?” (v. 5) E como Filipe vamos
continuar pensando que acabar com a fome no mundo é uma “missão impossivel”.
Vai ser sempre assim, “duzentos denários de pão não seriam suficientes para que
cada um recebesse um pedaço de pão”. (v. 7)
Passamos a vida a
clamar por uma transformação dessa realidade, mostrando que é viável pela
partilha ou por uma economia solidária superar a realidade da fome no mundo. Mas,
tudo continua como está, a multidão de gente carente de tudo continua à nossa
volta, precisando, pedindo ajuda, alimento, tudo... Não tem jeito! No entando
não podemos esquecer as palavras de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. (Mc 6,37) Mas, como dar-lhes de comer? André, um dos
primeiros discípulos de Jesus traz novas perspectivas: um menino, cinco pães e
dois peixes. “Mas o que é isto para tantas pessoas?” (v. 9) Porém, é a
partir desta sensibilidade humana de André em relação aos pobres e a sua comida
que ele vai desencadear a vontade de Jesus.
Acreditar nos
pequenos, será que a fome pode ser superada a partir dos pequenos? O ensinamento
de Jesus passa por aí, pelo que cada um tem, posto em comum. Se a humanidade
aprendesse a partilhar muitas coisas que estão inúteis ou sobrando,
egoisticamente acumuladas ou desperdiçada em nossas mãos, todos teriam o
necessário e o suficiente, e ainda sobraria muita coisa. Deus é e sempre será o
Deus da abundância e da generosidade, e convida-nos a dar com generosidade.
O milagre de Jesus consistirá precisamente em fazer
que o pão se reparta e se multiplique sem medida. Não tirando do nada, como numa
mágica, mas sim do pouco. O menino não guardou o pão para si, e Jesus fez o
possível para que compartilhar o pão seja o compartilhar a vida.
Não vamos agora
teorizar sobre a questão da fome do povo. Vimos que a solução do dinheiro para comprar pão
para todos é impossível, porque o dinheiro muitas vezes não é a solução para
acabar com a fome do mundo. Jesus nos ensinou que, no que toca às coisas da vida
humana, Deus aproveita os dons da criação e o trabalho de homens e mulheres.
Não manda as coisas do céu nem quer agir sozinho. Assim Ele o fez com o “maná”,
o pão do deserto: ele não veio do céu, disse Jesus, foi aproveitado da resina
do deserto e multiplicado generosamente durante anos. Esta é a grande regra da
providência de Deus que Jesus nos recordou por palavras e por obras. Quando a
multidão, num sentido interesseiro e até preguiçoso, se preparava para
proclamá-lo rei, Jesus se afasta: não quer ser rei da economia milagreira, nem
substituir o trabalho de cada pessoa na busca do pão de cada dia.
Há
uma coisa clara, a fome não se mata com milagres, nem com dinheiro. O caminho é
como o texto deixa claro: partilhar do que se tem em benefício de todos. A
Igreja e a humanidade inteira são chamadas a reproduzir este milagre, este
sinal da partilha, entre tantos grupos e tantos povos que não podem comer sem
pagar a dívida que os empobrece. Outro tipo de leitura e interpretação de nosso
relato não teria sentido hoje.
“Jesus não veio
propriamente para distribuir cestas básicas e ser eleito prefeito, para
resolver os problemas materiais do povo, isso é apenas um «sinal» que acompanha
sua missão. Para resolver os problemas materiais do povo há meios à disposição,
desde que as pessoas ajam com responsabilidade e justiça. Mas para que isto
aconteça é preciso algo mais fundamental, que conheçam o Deus de amor e a
Justiça que se revela em Jesus. E é para isso que Jesus vai pronunciar o sermão
do pão da vida como veremos nos próximos domingos”. (Konings, 2003.)
Hoje temos consciência que convencem mais
os gestos que belas palavras, por isso, o gesto de partilha e solidariedade
deve preceder as palavras para fazê-las credíveis. Necessitamos de olhos que
nos façam ver as necessidades e os sofrimentos dos nossos irmãos e irmãs. E uma
vez conscientes disso que o Senhor nos inspire a partilhar e “quando todos se
saciarem, recolher os pedaços que sobraram, para que nada se perca”. (v.
12)
A nossa tarefa, portanto, é uma tarefa nunca acabada, que deverá recomeçar em
qualquer tempo e em qualquer lugar onde haja um irmão ou irmã com fome do pão material ou “fome de Deus”. Uma
realidade que pouco nos preocupa ou ocupa nosso pensamento e que às vezes até
consideramos muito distante de nós. Mas, ao vê-la presente, naqueles que nos
cercam, nos ajudará a relativizar tantos problemas que para nós parecem maiores
e a viver mais serenamente preocupando-nos somente com aquilo que é essencial.
Bibliografia:
Textos e referências
bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
Caballero, B. A Palavra de cada Domingo. Ano B.
Apelação (Portugal) Paulus, 2001.
Konings, Johan. Liturgia Dominical, Petrópolis,
Vozes, 2002.
Muito obrigado padre por tudo que o senhor nos ensina inspirado e iluminado pela sabedoria do EVANGELHO.
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