Retornamos
ao ciclo litúrgico do Tempo Comum. É o tempo da cotidianidade e da vida comum.
Percorreremos como um programa de iluminação ou catequese dominical as
perícopes principais do Evangelho de São Marcos e perpassaremos concomitantemente
aspectos importantes de nossa vida pessoal e eclesial.
Temos
consciência de que o ser humano é um ser dividido, fragmentado, envolvido ao
mesmo tempo de graça e de maldade. Todos temos esta experiência profundamente
humana. O Concílio Vaticano II na encíclica Gaudium
Et Spes afirma: “Um duro combate contra os poderes das trevas atravessa,
com efeito, toda a história humana; começou no princípio do mundo e, segundo a
palavra do Senhor, durará até o último dia. Inserido nesta luta, o homem deve
combater constantemente, se quer ser fiel ao bem; e só com grandes esforços e a
ajuda da graça de Deus conseguirá realizar a sua própria unidade. (GS 37)
O
livro do Gênesis (cf. Gn 3,9-15.20) nos coloca diante da fragilidade da
condição humana. Conforme o relato bíblico da criação, Adão, o primeiro homem,
rico de dons, não teria decidido por si só se rebelar contra Deus. Ele jamais
teria ousado desobedecer os preceitos divinos se a tentação não tivesse vindo
de fora, se não fosse provocado externamente, uma força exterior agiu no homem
para por em ação as possibilidades de mal que estavam nele. Assim a presença
misteriosa, mas real, do tentador, de satanás se faz sentir desde as primeiras
páginas da Bíblia.
“Na
narração do primeiro pecado no Éden aparece com toda a sua gravidade e
dramaticidade aquilo que constitui a essência mais íntima e mais obscura do
pecado: a desobediência a Deus, à sua lei, à norma moral que ele deu ao homem,
gravando-lha no coração e confirmando-a e aperfeiçoando-a com a revelação. Exclusão
de Deus, ruptura com Deus, desobediência a Deus: é isto o que tem sido, ao
longo de toda a história humana, e continua a ser, sob formas diversas, o
pecado, que pode chegar até à negação de Deus e da sua existência...
Na
descrição do ‘primeiro pecado’, a ruptura com Javé espedaçou, ao mesmo tempo, o
fio da amizade que unia a família humana; tanto assim que as páginas do Gênesis
que se seguem nos mostram o homem e a mulher, como que a apontarem com o dedo
acusador um contra o outro; depois o irmão que, hostil ao irmão, acaba por
tirar-lhe a vida.” (João Paulo II, 1984) A luta entre o bem e o mal, que
acompanha o ser humano desde o paraíso terrestre (cf. Gn 3,5) traz como maior expressão
do mal o próprio demônio. Para expressar a decisão do homem entre o bem e mal,
a Sagrada Escritura, em suas primeiras páginas, usa uma linguagem figurada, que
só se tornou clara com a vinda de Jesus. Com o nome de satanás, (do hebraico =
o adversário) ou de diabo (do grego = o caluniador) a Bíblia designa um ser
pessoal, invisível, mas cuja ação se manifesta pela atividade de outros seres
ou pela tentação.
“Rompendo
a relação com Deus, o pecado subverte todas as relações do homem e altera
também a própria percepção que a criatura tem de si mesma. Mas Deus é maior que
o pecado: conserva o seu amor fiel pelo homem e abre-lhe um futuro de esperança
e de salvação. Tem assim início, a partir desta página bíblica, a história do
pecado da Humanidade, mas também tem início aqui e sobretudo, a espera
messiânica, a História da Salvação. A liberdade e o coração do homem serão o
campo de batalha entre os dois grandes contendores: o Maligno e Deus. Desde
agora porém, já é dito quem será o vencedor. (Casarin, 2010.)
O
demônio, pai da mentira, conseguiu enganar os nossos primeiros pais e ao longo
da história da humanidade tem continuado, com suas artimanhas seduzir a
humanidade. Frente a tanto engano, logo após a primeira queda, Deus, prometeu
Alguém, que da descendência da mulher, haveria de esmagar a cabeça da serpente
enganadora. E a promessa foi cumprida, a vitória da humanidade sobre satanás
será Cristo, Redentor da humanidade, alguém mais forte que satanás.
Os
evangelhos apresentam a vida pública de Jesus como uma luta contra satanás. Tudo
começa com o episódio da tentação em que, pela primeira vez, depois da cena do
paraíso, um homem, representante da humanidade, se encontra face a face com o
diabo. Esta luta se abre com as libertações dos endemoninhados. Eles provam que
chegou o Reino de Deus (cf. Mc 3,22s) e que terminou o de satanás.
E,
precisamente no momento da paixão e morte de Jesus em que o diabo parece vencer,
o “príncipe deste mundo” é “lançado fora” (cf. Jo 12,31).
No
Evangelho de São Marcos (cf. Mc 3,20-35) Jesus volta para casa e sente o
ambiente tenso em que ele já não é bem vindo. Sua pregação pela Galiléia gera
atitudes contraditórias em dois grupos bem distintos: sua família e os
fariseus.
Seus
familiares que o conhecem, pois cresceram com Ele desde criança acham que Jesus
foi longe de mais e que deve desistir de sua missão (3,21), querem levá-lo de
volta para Nazaré pois julgam que ele está fora de si, que ele “enlouqueceu”.
Mas, a cautela dos familiares vem tarde de mais; os escribas inquisidores
vieram de Jerusalém para levantar acusações contra o Mestre disseram que Ele
“está possuído por Belzebu”, pelo demônio, está possesso (3,22) e se realiza
obras extraordinárias, conta com a sua ajuda.
Absurdo!
Contesta-lhes Jesus. Satanás não se autodestroi; se Ele o vence é porque é mais
forte que os poderes do mal. Segundo Jesus, a acusação caluniosa dos escribas à
sua pessoa constitui uma blasfêmia contra o Espírito Santo, com cuja força ele
expulsa os demônios: “Tudo será perdoado aos filhos dos homens, os pecados e
todas as blasfêmias que tiverem proferido. Aquele, porém, que blasfemar contra o
Espírito Santo, jamais será perdoado: é culpado de pecado eterno”. (28-29)
“Negar que Jesus tenha o poder de perdoar pecados, de expulsar os demônios e
vencer as forças do mal, negar-lhe seu poder divino e redentor, opor-se à sua
obra salvadora é ‘blasfemar contra o Espírito Santo’. Espírito Santo aqui não é
a terceira pessoa da Santíssima Trindade, mas o próprio Cristo como Filho de
Deus, sua divindade. Quando se nega a divindade de Jesus, nega-se também seu
poder de perdoar e redimir, por isso mesmo, anula-se o perdão que Deus pode dar
à criatura. Não é que haja pecados que Deus não possa perdoar. Sua misericórdia
é e será sempre infinita. Cristo é a encarnação da misericórdia divina. Mas
Deus não pode perdoar a quem não quer o perdão e nega seu poder de perdoar.”
(Neotti, 2002.)
Não
há pecado pessoal ou original que não possa tornar-se história de salvação,
graças ao médico divino que veio curar todos os doentes do corpo ou do
espírito. Jesus é o redentor e o salvador de todos e de cada um, de cada pecado
e de todos os pecados. Há um só obstáculo capaz de se opor à ação universal e
redentora de Cristo: a recusa em reconhecê-lo como Redentor, ou então não
reconhecer a nossa necessidade dele. Este é o pecado contra o Espírito Santo.
Só a fé nos consente reconhecer o nosso pecado e nos dá a possibilidade da
salvação.
São
muitos os cristãos que não creem mais na existência de satanás. A experiência
que fazem da tentação não lhes parece postular a existência de potências
demoníacas. A personificação do mal, dizem, pertence a uma época ultrapassada,
na qual o homem se considerava joguete das forças cósmicas. A mitologia popular
de antigamente não é mais levada em conta hoje, o que se chamava possessão
diabólica é um dos muitos traumas que a psicologia procura explicar. Por outro
lado é cada vez mais evidente a dificuldade com que os teólogos modernos falam
de satanás e das potências do mal. Mas as perícopes evangélicas em que dele se
fala com tanta convicção e tão explicitamente convidam-nos a refletir; além
disso, a experiência que cada pessoa tem do pecado a obriga a dizer que cedeu
às tentações porque o mal se acha objetivamente dentro da realidade, antes que a
pessoa nela consinta por um ato de sua livre vontade. Isto significa que, pecando,
o homem tem a consciência de se tornar parte ativa de uma solidariedade no
pecado, preexistente a ele, e que inclui também outras criaturas espirituais
além do homem.
Mas,
a vida do cristão começa com a vitória radical sobre o mal e sobre satanás no Batismo.
Estende-se, atualiza-se continuamente na participação dos outros sinais da
vitória de Cristo, os outros sacramentos. Toda a vida do cristão se torna, como
de Cristo, uma luta, um duelo com o mal e as potências do maligno.
O
Papa João Paulo II disse: “A batalha contra o demônio que é a principal tarefa
de São Miguel Arcanjo, ainda acontece nos dias de hoje, porque o demônio está
vivo e ativo no mundo”. Ele é um dado da experiência diária. Está aí presente
em tantas situações de pecado, dentro e fora de nós, encarnado na tentação e em
quantas pessoas que praticam o mal e pecam optando pela violência e a
destruição, a corrupção e a injustiça, o ódio e o rancor, o abuso e a
exploração, o egoísmo e o desamor. Porque tudo isto? Não é porque Deus queira,
mas porque a pessoa o produz com o abuso da sua liberdade, isto é, com o
pecado. Podemos vencer o mal que quer nos dominar? Podemos resistir às
tentações do mundo, do demônio e da carne? Sim, porque Jesus o conseguiu, nele
está a misericórdia e a abundante redenção. O discípulo de Cristo, unido a Ele
e cumprindo a vontade do Pai, pode também derrotar o mal na sua vida pessoal e
no ambiente que o rodeia. Desde então podemos vencer com o bem. “Não te deixes
vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem”. (Rm 12,21)
Se
como Cristo prometeu, o poder do inferno não derrotará a sua Igreja, também não
poderá com cada um de nós se optarmos pelo bem mediante o amor que Deus derrama
nos nossos corações pelo Espírito. Temos constantemente de escolher entre o bem
e o mal, o amor e o egoísmo. A bênção e a maldição, a vida ou a morte. Optemos
por Cristo, optemos pelo amor que é a única força eficaz contra o mal.

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