Este quarto domingo da Páscoa é conhecido como o Domingo do Bom Pastor, pelas alusões que a Liturgia faz em seus textos e orações a essa relação pastor – ovelha que Jesus gostava tanto e que foi bem assimilada pelas primeiras comunidades cristãs. Talvez hoje a nós nos custe um pouco mais entender, já que nossa mentalidade numa cultura urbana e industrializada está distante do mundo rural pastoril. Mas não deixa de ser uma das imagens mais expressivas do que Jesus é para nós: Ele é Bom Pastor.
“Eu sou o bom pastor” (Jo 10,11). O primeiro aspecto que nos chama a atenção desta expressão é, precisamente, esta primeira palavra. Jesus é um “pastor bom”, mas não no sentido moral, de portar-se bem. Ser bom aqui tem um sentido de autenticidade. Jesus é o autêntico pastor. Ser autêntico significa também ser genuíno, fiel, provado, autorizado, verídico, legítimo, confirmado, incontestável. Tudo isso dizemos de Jesus que exerce a sua tarefa com delicadeza e amor.
Um dos aspectos da autenticidade do pastor é o conhecimento mútuo entre ele e as ovelhas: “conheço as minhas e as minhas ovelhas me conhecem”. (Jo 10,14b), e este conhecimento é o primeiro sinal de um amor que progressivamente o levará a dar a sua vida por elas. Jesus é o autêntico pastor porque aquilo que revela quem é o Bom Pastor é que ele conhece as ovelhas e por elas é conhecido, e o outro aspecto é ser capaz de dar a vida: “o bom pastor dá a sua vida pelas suas ovelhas” (Jo 10,11b).
“Conhecer e pertencer estão reciprocamente entrelaçados. O pastor conhece as ovelhas, porque elas lhe pertencem, e elas o conhecem precisamente porque elas são as suas ovelhas. O conhecer e o pertencer são propriamente uma e a mesma coisa. O verdadeiro pastor não ‘possui’ as ovelhas como uma coisa qualquer, que se pode usar e gastar; elas ‘lhe pertencem’ precisamente no se conhecerem, e este ‘conhecer’ é um acolhimento interior. Significa um pertencer interior, que vai muito mais além do que a posse das coisas.
Procuremos tornar isto claro com um exemplo da nossa vida. Nenhum homem ‘pertence’ a outro como uma coisa lhe pertence. Os filhos não são ‘propriedade’ dos pais; os esposos não são ‘propriedade’ um do outro. Mas eles ‘se pertencem’ de um modo mais profundo do que, por exemplo, uma peça de madeira ou um campo ou outra coisa qualquer que possa considerar-se ‘propriedade’. Os filhos ‘pertencem’ aos pais e são, no entanto, eles mesmos livres criaturas de Deus, cada um com a sua própria vocação, com a sua própria novidade e unicidade perante Deus. Não lhes pertencem como posse, mas sim em responsabilidade. Eles se pertencem precisamente na medida em que aceitam a liberdade do outro e reciprocamente se suportam na liberdade e no amor – na eternidade, nesta reciprocidade a liberdade e a unidade constituem ao mesmo tempo uma única realidade.
É assim que também ‘as ovelhas’ pertencem ao pastor, não como coisas, mas como pessoas criadas por Deus, à sua imagem. Precisamente esta é a diferença entre o proprietário, o verdadeiro pastor e o salteador.” (Bento XVI, 2007)
O Bom Pastor quer constituir um só rebanho, e lhe preocupa todas as ovelhas, mas especialmente aquelas que estão mais afastadas do redil. O Bom Pastor atua com muita liberdade e com muito amor, convida, propõe, respeita e não deixa de amar a nenhuma de suas ovelhas, por isso deu sua vida. A entrega do autêntico pastor é uma entrega que nasce da liberdade: (a vida) “ninguém a tira de mim, as eu a dou livremente” (Jo 10,18).
“Dar a vida pelas ovelhas” significa estar disposto a sacrificar-se por amor. As ovelhas sentem e percebem quando alguém as defende, as protege. Isto vale para todos nós: para os padres e para aqueles que têm qualquer responsabilidade sobre outras pessoas. Para um padre saber se é um pastor bom, não basta ter sido nomeado pároco e obedecer estritamente às normas canônicas. É necessário ser reconhecido como bom pastor pelas ovelhas, é necessário que a comunidade reconheça os traços de Jesus, o bom pastor no padre. “Vi Deus num homem” assim se expressou alguém ao ver o velho santo cura d’Ars, São João Maria Vianney. Pois Jesus disse que não só o pastor deve conhecer as ovelhas, senão que também as ovelhas reconheçam o pastor (cf. Jo 10,14). Porque se a comunidade cristã não reconhecer o bispo ou o padre como seu pastor, ainda que seja nomeado segundo o direito canônico e revestido com toda a autoridade e símbolos do poder sagrado, ele não será pastor segundo o coração de Cristo.
Não são só as ovelhas que devem obedecer a quem as conduz. Também aquele que conduz deve estar muito atento à reação das ovelhas para saber se age como pastor ou mero “funcionário do sagrado” ou o que é mais melancólico portar-se como mercenário, vivendo comodamente à custa do pobre rebanho.
“O mercenário, que não é pastor” (Jo 10,12). Olhando de fora, não se percebe a diferença entre o mercenário e o pastor. Os dois se ocupam das ovelhas. Hoje há muitas pessoas que se ocupam de outras nos hospitais, nas instituições de caridade, nas paróquias, nas comunidades, nos colégios, no serviço público, na política. Alguns o fazem por amor, outros, apenas pelo salário, pela sobrevivência. A estas pessoas os outros não lhes interessam. Têm conduta de funcionários, de assalariados ou de mercenários. No momento do perigo do rebanho, elas não se interessam não se angustiam, nem se preocupam, porque as ovelhas não são suas; as crianças ou idosos não são deles, os alunos não são deles, os doentes não são deles, os fieis não são deles.
Esse “dar a vida” devemos entendê-lo em um sentido amplo. Dá a vida, a pessoa que vive dedicada em corpo e alma aos outros, o que dedica toda sua vida a serviço do próximo mais necessitado. Na Igreja Católica podemos apresentar muitas destas pessoas que deram sua vida por suas ovelhas, são muitas, muitíssimas as pessoas que gastam e consomem sua vida trabalhando pelos outros. Não o fazem por interesses econômicos, políticos ou de poder; não, mas o fazem por amor ao próximo. Tampouco devemos pensar que estes “bons pastores” são sempre padres, freiras ou monges; há muitíssimos leigos e leigas que dedicam ou dedicaram sua vida a ajudar aos outros. Eu mesmo sou testemunha de tantos e tantas, incontáveis e anônimos irmãos e irmãs que somente movidos por amor a Deus, à Igreja e ao próximo fizeram de suas vidas um permanente “dar a vida”. Também estes são, no melhor sentido da palavra, bons e autênticos pastores. Todos os cristãos devemos aspirar a ser bons pastores, pela simples razão de que todos os que queremos viver como discípulos e discípulas de Cristo devemos tratar de imitar o Bom Pastor.
Todos estes traços do bom pastor me fazem questionar-me também pela autenticidade das “ovelhas”. São João fala em sua carta (cf. 1Jo 3,1-2) de umas “ovelhas” que são algo mais: “vede que manifestação de amor nos deu o Pai: sermos chamados filhos de Deus. E nós o somos”. Porém mais: “o que nós seremos ainda não se manifestou... seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é”. O autêntico Pastor tem capacidade para dar vida porque é Pai. E as autênticas ovelhas, temos de viver como filhos e filhas, aí reside nossa autenticidade, em viver nossa condição de filiação divina. Esta condição nasce do Batismo, mas não convém confundir “batizado” com “discípulo”. Todos somos filhos de Deus pelo Batismo, mas nem todos vivemos nossa condição de filhos de Deus de maneira autêntica e verdadeira. Aí é onde creio que nos questiona o evangelho de hoje.
Esta é a razão mais profunda e verdadeira do amor de Cristo, Bom Pastor a todas suas ovelhas: que todos somos filhos de Deus, que Deus é Pai de todos. E esta deve ser também a única razão que oriente nosso amor aos outros: todos somos irmãos, porque todos somos filhos e filhas de um mesmo Pai: Deus. Só a fé nos faz ser plenamente conscientes de nossa condição de filhos de Deus. Movidos, pois, pela fé, atrevemo-nos todos os dias a chamar a Deus: Abba, Pai. E atrevemo-nos a chamar “irmãos” a todas as pessoas com as quais nos encontramos e a considerá-las como tais. Todos estamos dentro do redil de Deus, guiados por um único pastor, que é Cristo.
No domingo do Bom Pastor todos os cristãos devemos perguntar-nos se de verdade, estamos dando a vida pelos outros, imitando nosso único Pastor. Agora, em vez de continuarmos a julgar a conduta dos outros iluminados pela imagem do bom pastor, que dá tudo por suas ovelhas sem regatear e que busca a felicidade dos outros, o bem dos outros. Ponhamo-nos diante de nossa consciência e perguntemo-nos: Em minha relação com os outros assumo a conduta de mercenário ou de pastor? Comporto-me como filho ou filha de Deus?
Seria muito triste comprovar que os não cristãos não nos vêm a nós cristãos como pessoas entregues ao serviço dos outros, desinteressadamente e por amor fraterno. E se aos que nos chamamos padres, freiras, bispos, Papas, não nos viram os leigos e leigas como pessoas dedicadas inteiramente aos outros, quer dizer, como bons pastores, será algo realmente lamentável.
Peçamos ao Bom Pastor que a cada domingo nos reúne para compartilhar nossa condição de irmãos e nos convida às suas verdes pastagens e nos alimenta Ele mesmo, seu Corpo e seu Sangue para que sejamos pastores uns dos outros; que vivamos nossa fé com autenticidade, para que o reconheçamos como nosso Pai, como nosso autêntico Pastor e para que sejamos autênticas ovelhas, autênticos filhos e filhas seus.
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
Bento XVI. Jesus de Nazaré, Do Batismo no Jordão à Transfiguração. São Paulo, Planeta, 2007.
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