Padre José Assis Pereira Soares
Paróquia Nossa Senhora de Fátima
Campina Grande / PB
Chegamos ao
sexto domingo da Quaresma, com o qual tem início a Semana Santa, chama-se
Domingo dos Ramos e da Paixão do Senhor. Começa a grande semana litúrgica que
nos conduz à Páscoa, à paixão, morte e ressurreição do Senhor; “mistério
pascal”, centro de nossa fé e liturgia cristã.
A Semana Santa
é um tempo de profundas e piedosas vivências religiosas; o mistério do Deus
“entregue por nós” e a força de sua ressurreição, nos convocam a contemplar a
Cruz que é o triunfo do amor sobre o ódio, a esperança frente toda
desesperança. “Os pensamentos dos Padres da Igreja mostram que estes viam a
cruz de maneira positiva. Para eles, a cruz não era em primeira instância um
símbolo do sofrimento ou da morte, mas um símbolo da vida, da vitória do amor
sobre o ódio do mundo. Eles enxergam o efeito sanador, transformador e
centralizador da cruz, e não se cansam de cantar os louvores da cruz e
bendizê-la em sempre novas imagens. Sente-se a fascinação que a cruz lhes
provocou. A cruz lhes dava a sensação de que já não havia nada que lhes pudesse
fazer mal. Sendo verdade que a cruz foi transformada em vitória do
Ressuscitado, Deus transformará também em nossas vidas todas as trevas em luz,
todos os medos em confiança e todas as paralisações em nova vida.” (Grün,
2010.)
Ao longo do séc. IV, os cristãos empenhavam-se por imitar os
últimos passos da vida de Jesus, desde sua entrada em Jerusalém até sua
ressurreição. Para isso celebravam nos mesmos locais e procuravam manter os
mesmos horários dos últimos acontecimentos de Jesus. Em fins do séc. IV
encontramos em Jerusalém notícias sobre uma celebração que procurava recordar o
mais exatamente possível a entrada de Jesus na cidade. Da igreja-mãe de
Jerusalém, esse costume foi se espalhando para todas as demais igrejas. A
entrada solene de Jesus em Jerusalém entre palmas e hosanas foi assim
incorporada como abertura da Semana Santa.
Os quatro
evangelistas referem a entrada de Jesus em Jerusalém, com algumas pequenas
diferenças. Este ano o evangelho da entrada de Jesus em Jerusalém segundo
Marcos (cf. (Mc 11,1-10) nos conduz pela festiva procissão da comunidade cristã
com ramos de palmeira acompanhando o Messias para o seu triunfo. Toda a
“tradição” e beleza da procissão dos ramos nos convida e nos introduz naquela
experiência de ir a Jerusalém com o profeta da Galiléia. Jesus, sem dúvida, já
sabia o que o esperava: o julgamento, a condenação e a morte. Tudo isso foi
representado e se representa muitas vezes na estética litúrgica ou teatral, mas
em torno daquela Páscoa do ano 30 não havia nada teatral, senão a dura
realidade de “alguém” que sabe o que quer. Jesus não se deixa iludir pela gente
da cidade que vai recebê-lo, com ramos de palmeira como a entronizar um rei
vitorioso ou pelos gritos e aclamações messiânicas de “hosana”; porque não se
sentia Messias, ao menos como alguns o interpretaram. Estas aclamações darão o
colorido político que irá justificar o seu julgamento e sua condenação ante os
poderosos que o estavam esperando.
A
abertura solene da grande “semana santa” tem também por centro o Mistério
Pascal de Jesus Cristo. Daí a relação com o evangelho pascal por excelência, o
relato da Paixão do Senhor. Sendo este o único domingo no ano em que se
proclama o relato da Paixão, hoje segundo Marcos (cf. Mc 14,1-15,47).
A parte
da vida de Jesus relatada mais em pormenor por todos os evangelistas é a sua
Paixão, pois culmina a vida e obra redentora de Cristo. O sofrimento que o
Senhor abraçou voluntariamente põe em evidência do modo muito significativo
tanto o seu amor infinito para com todos nós, como a gravidade dos nossos
pecados. Os estudiosos pensam que foi a parte do Evangelho que tomou forma
definitiva escrita mais cedo.
Os
quatro relatos da Paixão do Senhor que nos propõem todos os quatro evangelistas
não são um mero relato. Têm um quê de reflexão e meditação sobre tão
assombrosos acontecimentos, feita à luz do Antigo Testamento. Também nós não
devemos passar apressadamente os olhos por estas páginas, mas meditá-las,
metermo-nos dentro destas cenas e renovar frequentemente a sua lembrança: quem
sofre, quanto sofre, para que sofre, porque sofre e por quem sofre? Esta
meditação tem feito muitos santos ao longo de todos os tempos, pois não pode
deixar ninguém indiferente a um amor tão grande.
A Paixão
segundo são Marcos é o relato mais primitivo que temos dos evangelhos. Sabemos
que não podemos explicar o texto da Paixão em uma “homilia”, mas que devemos
convidar a todos para que cada um se sinta protagonista deste belo relato e
considere onde você podia estar presente, em que personagem, como atuou nesse
caso. Precisamente porque é um relato que nasceu quase com toda segurança, para
a liturgia, é a liturgia o momento adequado para experimentar sua força
teológica e espiritual. Não é, pois o momento de entrar em aprofundamentos históricos
ou exegéticos sobre este relato, sobre o que se podiam dizer muitas coisas.
Durante toda a
nossa vida passamos por muitas experiências. Algumas são agradáveis e todos as
gostam de partilhar conosco. Noutras, às vezes dramáticas, sentimo-nos
abandonados por todos e sofremos completamente isolados. Silenciamos algumas
situações por falta de coragem, omitimos outras por força espiritual e, nesses
momentos, somos capazes de ser entendidos por aqueles que nunca lidaram
conosco. Esta também foi a vivência de Jesus, enquanto verdadeiro homem. A tudo se deixou submeter por obediência ao
Pai, para nos redimir como verdadeiro Filho de Deus.
Jesus não
reage, mas aceita passivamente o que lhe está a acontecer, a fim de “se
cumprirem as escrituras”. Assim, Marcos quer acentuar que Jesus não se revolta
contra os acontecimentos, que não pode impedir. Nós, como Jesus, podemos rezar
para que Deus nos evite certas provas, desde que, depois, estejamos dispostos a
suportar as contrariedades que temos de enfrentar na vida.
Nesta narração
da Paixão ninguém toma a defesa de Jesus. É abandonado pelos discípulos, traído
pela multidão, zombam dele, é flagelado e humilhado pelos soldados, insultado
pelos que passam. Faz a experiência da impotência, do abandono. Somente algumas
mulheres o observaram de longe. Jesus sente-se completamente abandonado por
todos, até pelo Pai e, por isso, grita: “Meu Deus, porque Me abandonaste?” (Mc
15,34)
Conosco pode
acontecer algo semelhante quando nos empenhamos em viver de maneira coerente
com aquilo que cremos, quando queremos construir no mundo ou na comunidade
eclesial, uma relação de sinceridade e de acordo com o Evangelho, acabamos
muitas vezes por nos encontrar isolados, desaprovados por amigos, recusados pela
própria família. Nestas circunstâncias poder-nos-emos sentir abandonados por
Deus e nos questionamos se valerá a pena lutar e sofrer tanto para acabar
vencido. É nestes momentos que devemos olhar para Cristo e encontrar nele uma
resposta às nossas contrariedades.
Marcos
apresenta Jesus sempre em silêncio durante o processo. Perante os ultrajes, as
provocações, as mentiras, Ele cala-se. Nada responde. Consciente de que já
haviam decidido a sua condenação, não aceita qualquer disputa que em nada iria
alterar a sentença. Não reagindo, Jesus atesta, não apenas a sua firmeza de
estar na verdade, mas a convicção de que a justa causa por Ele sustentada
acabará por triunfar.
O cristão,
como Jesus, não é fraco e sem audácia, não se demite, não deixa de lutar contra
o mal, mas procura a verdade por todos os meios legítimos. É alguém que, como
Jesus, se recusa a utilizar a falsidade usada pelos seus opositores através da
difamação ou da violência. Não se amedronta com a derrota, não se preocupa com
a vitória dos seus adversários, pois sabe que se trata dum sucesso ilusório.
O ponto
central de toda a narração da Paixão do Senhor segundo Marcos é a profissão de
fé declarada ao pé da cruz pelo centurião romano: “Na verdade, este homem era
Filho de Deus.” (Mc 15, 39). Todo o Evangelho de Marcos apresenta-nos Jesus
recomendando àqueles que os curava para nada revelarem. Tal segredo deve ser
conservado até o fim, pois só depois da sua morte e ressurreição será possível
perceber quem Jesus verdadeiramente é. O centurião reconhece Jesus como “Filho
de Deus” não pelos fatos extraordinários que acontecem no momento da morte do
Senhor, mas pela forma como Ele morre.
O Deus da
cruz, que é o que Marcos quer apresentar-nos, não é Deus por ser poderoso, mas
por ser fraco e crucificado. É evidente que este é um Deus que escandaliza; por
isso se permitiu que fosse um pagão quem ao final da paixão, no fracasso
aparente da morte, se atreva a confessar o crucificado como “Filho de Deus”. Este
soldado pagão é a figura de todas as pessoas que chegam á fé em Jesus, não por
terem presenciado qualquer prodígio, mas por terem percebido o sentido duma
vida oferecida aos irmãos por amor. É da descoberta desta manifestação do amor
de Jesus que brota a verdadeira fé e adesão a Cristo.
“A cruz torna
visível a sabedoria de Deus, que consiste justamente em seu amor que não exclui
ninguém, mas que se volta especialmente às pessoas fracas e fracassadas. A cruz
é sinal de um amor incondicional que dá esperança a cada pessoa que não tem
nada a mostrar, que tem a sensação de estar diante de um monte de cacos... Portanto,
a cruz é para Marcos a virada das trevas para luz, da impotência para novo
poder, do ódio para o amor. Na cruz, Jesus arriscou-se até as primeiras linhas
de frente da maldade humana, para vencê-la ali por meio da força de seu amor.
Dessa maneira, a cruz é para nós um sinal da esperança de que não há nada que
não possa ser transformado por meio da luz de Jesus Cristo.” (Ibid. Grün.)
Marcos revela,
pois, que a lógica de Deus é muito diferente da lógica humana. Mas é inegável
que, da cruz, o Filho de Deus confunde a sabedoria humana, o poder e a força
dos poderosos. Deus se revela como um apaixonado pelo mistério da morte de seu
Filho.
Como vemos por
estes poucos traços, o relato da Paixão do Senhor não fica somente no
litúrgico, pois os aspectos espirituais e teológicos são de maior importância.
Quanto a nós, teríamos acompanhado Jesus do Horto das Oliveiras, ao seu
julgamento e ficado ali, junto a Cruz no Calvário, ou teríamos também corrido e
fugido? Como o fez o jovem que o seguia, vestido com um lençol, e eles o
prenderam. Mas ele largou o lençol e fugiu completamente nu. (cf. Mc 14,51) O
jovem representa o discípulo de Cristo. Para segui-lo os apóstolos deixaram
tudo, mas no momento em que perceberam que o fim da viagem é a oferta da vida,
tudo abandonam, mas agora não para seguir Jesus e sim para fugir. E nós, como
nos situamos em face desse mistério de amor?
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de
Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
Grün,
Anselm. A cruz a imagem do ser humano redimido. São Paulo, Paulus, 2010.
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