Padre José Assis

Subimos toda a Quaresma, caminho da Páscoa, lançando mão dos meios de que a Igreja se serve para nos despertar para tão indizível acontecimento. Este percurso também é de penitência, pois a Quaresma em si é um sacramento da penitência, alcançando-nos o perdão que Deus nos dá: "Perdoarei sua culpa e não me lembrarei mais de seu pecado. (Jr 31,34)
O Salmo 51(50) é considerado ao longo da história como uma peça importante da liturgia penitencial. O pedido não pode ser mais adequado para este tempo: “Ó Deus, cria em mim um coração puro, renova um espírito firme no meu peito, não me rejeites para longe de tua face, não retires de mim teu santo espírito.”(Sl 51(50), 12-13) O penitente reconhece que o pecado é o grande obstáculo ao crescimento da fé, afeta o íntimo de seu ser e é causa de inquietação e sofrimento espiritual, por causa da ofensa pessoal a Deus. Pede então a Deus que lhe dê um “coração puro”, pois um coração impuro é aquele que vê o mal por todas as partes e que não é capaz de contemplar a alegria da salvação. Como é importante esta pureza de coração para compreendermos a grandeza infinita do Amor de Deus, quanto sofrimento custou a Jesus a nossa salvação!
“Eu te amei com amor eterno, por isso conservei para ti o amor.”(Jr 31,3) A revelação de Deus do seu infinito amor começa logo após a queda dos nossos pais no paraíso. Esse amor foi reafirmado por Deus através das várias Alianças ao longo da história da salvação, como vimos ao longo destes domingos quaresmais: a Noé, a Abraão, a Moisés... O profeta Jeremias (cf. Jr 31,31-34) profetiza uma nova Aliança: “Eis que dias virão em que concluirei uma aliança nova... Porei minha lei no fundo de seu ser e a escreverei em seu coração. Então serei seu Deus e eles serão meu povo.”(Jr 31, 31.33)
Este oráculo, tem uma importância central na Teologia do Novo Testamento, como uma das grandes professias messiânicas. O povo de Israel tinha violado a Aliança, mas o Senhor não volta atrás no seu amor misericordioso, e anuncia que vai oferecer a todos uma “Aliança nova”, isto é, definitiva, interior, pois será gravada no coração. Esta aliança de amor teve o seu pleno cumprimento em Jesus Cristo.
Jesus aprendeu a ser fiel à Aliança, obedecendo, escutando, suplicando como nos fala a Carta aos Hebreus (cf. Hb 5,7-9). Em obediência ao Pai e por nosso amor, Jesus a tudo sujeitou-se. Ele, Deus e Homem verdadeiro, como homem, abaixou-se ao mais profundo de nossa dor; sofreu como qualquer outro mortal as terríveis dores físicas e morais e a repugnância ante sua morte: “Ele, nos dias de sua vida terrestre apresentou pedidos e súplicas, com veemente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte; e foi atendido por causa da sua submissão.”(Hb 5,7)
Como Jesus foi atendido, em quê? É dificil dizer. Sabemos que Ele sofreu e morreu na cruz depois de sua oração no horto das oliveiras. O autor da carta aos hebreus descreve com palavras cheias de realismo a oração e a angústia de Jesus, evidentemente no Getsêmani. Se o autor fala que Ele foi ouvido, isto só pode ter dois sentidos: Alguns estudiosos deram como resposta mais viável, que Jesus não conseguiu a libertação do cálice de amargura, mas venceu a repugnância natural à morte e alcançou a coragem para enfrentar a sua paixão identificando-se plenamente com a vontade do Pai. Ou, como pensam outros, Jesus foi atendido ao ser libertado da morte pela sua ressurreição, o que lhe permite exercer o seu sacerdócio eterno.
“Embora fosse Filho, aprendeu, contudo, a obediência pelo sofrimento”(Hb 5,8), ou melhor, por aquilo que sofreu aprendeu o que é obedecer. Não é que o sofrimento tenha sido o meio para aprender a obediência, mas a consequência desta. Trata-se de uma aprendizagem não teórica, mas experimental, existencial.
Os evangelhos, sobretudo os sinóticos, nos remetem ao Getsêmani: um estado de angústia, de luta interior, Jesus “perturbou-se” ao aproximar-se a “hora” de enfrentar a morte. Ele tinha plena consciência de que ia sofrer uma morte violenta, e que todos iriam abandoná-lo como um fracassado. Ele, diante da consumação de sua existência “perturbou-se” interiormente, sentiu fortemente a carga psicológica que isso implica e apela à compaixão do Pai: “Pai, salva-me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome.” (Jo12,27-28).
“É chegada a hora”, o autor do quarto evangelho (cf. Jo 12,20-33) apresenta a hora de Jesus, que é certamente, um tempo, mas não qualquer tempo mas sim o tempo da cruz, que também é o da glorificação de Jesus, a partir do símbolo da obediência radical. Não houve força humana capaz de separar Jesus da causa de seu Pai. Optou por abraçar a cruz.
Uma tentação possível neste momento seria a de pedir ao Pai para privá-lo dessa circunstância pavorosa, desse sacrifício, Jesus pensa que seria bom não passar pelo que o esperava, mas não seria correto, agora, preferir um atalho. Seria indigno optar pela fuga. A missão exigia a sua fidelidade, o seguir adiante. Paradoxalmente, Ele está consciente que nessa cruz se manifestará a “glória” do Filho do Homem. Ele reconheceu que toda a sua vida terrena esteve voltada para esta “hora”. Não escolhe o sofrimento por gosto de sofrer, o aceita por causa da missão.
Assim, “o Evangelho de João conhece uma teologia da cruz totalmente diferente. Para João, a cruz é a plena realização da encarnação. A cruz é o momento em que mais brilha a glória de Deus, que ficou visível na Palavra que se tornou carne. A Palavra tornou-se carne, carne fraca e débil. A glória divina não brilha no poder exterior, mas justamente na debilidade, na impotência do amor humano... Na cruz, Jesus é elevado. Em sua elevação, o amor de Deus que foi o motivo para que Deus se tornasse um ser humano torna-se visível para todos os seres humanos. Na cruz, torna-se visível o que é a natureza da Palavra de Deus, o amor misericordioso e salvífico. Por isso, a cruz é o convite mais alto de Deus para crer nesse amor misericordioso...
A cruz é para João simultaneamente um convite do amor, convite a vir até ela e experienciar nela o amor de Deus de maneira nova... A cruz é a imagem de um amor que se abre inteiramente. Jesus, que abre na cruz os braços, renuncia a qualquer proteção que colocamos muitas vezes diante de nós. Ele se entrega ao Pai, e deixa a nós, humanos, entrar junto a ele em seu amor... Portanto, a cruz é em João, por um lado, um símbolo para a transformação de nossa vida. A cruz como instrumento vergonhoso de tortura transforma-se na imagem da glorificação de Jesus.” (Grün, 2010.)
“Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas, se morrer, produzirá muito fruto.”(Jo 12,24) A história de um grão de trigo nos ajuda a entender a nós mesmos e o sentido de nossa existência. Cair na terra e morrer não é só o caminho para “dar fruto”, mas também para seguir vivendo!
O que ocorre com o grão de trigo que rejeita cair na terra? Vem algum pássaro e o come, ou seca, ou é moído na farinha, comido e aí termina tudo. Se ao contrário o grão de trigo é semeado, reaparecerá e conhecerá uma nova vida. O grão de trigo é a imagem da vida cristã. É preciso morrer para gerar frutos. Não se trata de buscar um fim heróico, mas uma ‘morte quotidiana’.
Jesus aceita ser grão que morre para dar fruto abundante. Em Jesus se dão as mãos duas realidades fortemente antagônicas: a morte e a fecundidade. Nós em geral, não estamos dispostos a perder a vida. Cristo, em troca, a perdeu, não se apegou a ela, e dessa maneira a ganhou para sempre e nos alcançou a possibilidade de também nós a ganharmos, seguindo seus passos.
“Quem ama sua vida a perde e quem odeia sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida eterna. Se alguém quer servir-me, siga-me...”(Jo 12,25-26) Jesus exige dos seus discípulos uma generosidade total como a sua. Não ter medo de ser semente, não ter medo de perder a própria vida. Muitos de nós já vivemos a experiência de aceitar algo que preferíamos não ter que enfrentar por causa de um bem maior. Quem faz isso pode parecer um perdedor para quem olha de fora, mas cada um sabe em nome de que valores é capaz de enfrentar dificuldades e depois dizer: valeu à pena!
Há situações nesta vida as quais a parábola do grão de trigo coloca uma luz tranquilizadora. Você tem um projeto em que você aposta tudo, lhe importa muito; por ele você trabalha ou dá a vida. Este projeto havia-se convertido no principal objetivo da sua vida, e eis que em pouco tempo você o vê como caído na terra e morto. Fracasso total! Lembre-se do grão de trigo e espere. Nossos melhores projetos e afetos, às vezes o próprio matrimônio, devem passar por esta fase de aparente escuridão e morte para renascer com frutos.
Jesus deixa aos seus discípulos a última e suprema lição; que eles devem aprender. Com a sua morte os discípulos aprendem o amor até ao extremo. Mas, sua morte não é um momento isolado e sim o culminar de um processo de doação total de si mesmo, que teve início quando Ele se encarnou, assumindo a condição humana; é como o último ato de uma vida de entrega total aos projetos de Deus, feita amor até ao final.
Qual a nossa resposta a tanto amor, tanta entrega e a tanto sofrimento? Como devemos nos sentir profundamente gratos e devedores a quem tanto nos amou! Não podemos ficar indiferentes. Só com um coração puro e espírito forte podemos penetrar mais profundamente no Amor infinito que Deus nos revela na paixão e morte de seu Filho.
Só o amor como dom total é fecundo e gerador de vida. Quem se ama a si mesmo se fecha num egoísmo estéril, quem se preocupa apenas com defender os seus interesses, quem ama o poder e não o poder de amar, perde a oportunidade de chegar à vida verdadeira, à salvação.
Com profundo e sincero arrependimento das nossas faltas, que serão sempre faltas de amor a Deus e aos irmãos, preparemos a confissão sincera do nosso pecado no Sacramento da Penitência. O Senhor que tanto nos amou, espera esta resposta generosa de todos. Assim não será em vão para nós tanto amor e sofrimento de Jesus.
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
Grün, Anselm. A cruz a imagem do ser humano redimido. São Paulo, Paulus, 2010.
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