PADRE JOSÉ ASSIS PEREIRA SOARES
PARÓQUIA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA
CAMPINA GRANDE - PARAÍBA
Seguimos avançando na Quaresma caminhando para a Páscoa. Alcançar Jesus nos faz encontrar-nos com uma realidade: a cruz. Nela, o Senhor, nos dá a máxima expressão de seu amor por nós. Na cruz, compreendemos que Deus, além de falar, escreve, sela e consagra com sangue uma palavra: amor. Repito as palavras do Papa Bento XVI na sua mensagem para a Quaresma: “A Quaresma oferece-nos a oportunidade de refletir mais uma vez sobre o amor.”
E é de amor que a Liturgia da Palavra deste segundo Domingo da Quaresma vai nos falar, fazendo-nos ver que só quando o amor passa ao campo da experiência existencial e vital é amor poderoso e eficaz. Um amor que não passe pela experiência corre o perigo de degenerar em abstração ou em puro sentimentalismo romântico.
O fragmento do Livro do Genesis (cf. Gn 22,1-2.9a.15-18) dirige nosso olhar a uma das páginas mais belas e dramáticas da Escritura: o chamado sacrifício de Isaac. Toda a cena é profundamente significativa. Abraão foi provado por Deus em outras ocasiões: deixar a sua terra, sua família, sair em busca de uma terra prometida; mas nunca se lhe havia pedido tanto como agora: “Abraão!... Toma teu filho, teu único, que amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, e lá o oferecerá em holocausto sobre uma montanha que eu te indicarei.” (Gn 22, 2) Abraão não compreende como vai se cumprir a promessa dele, ser pai de um povo numeroso, se agora o Senhor lhe pede para sacrificar seu único filho. Mas, sem questionar ele se dispõe a cumprir a vontade de Deus até as últimas consequências.
Abraão experimentou o amor providente de Deus: “É Deus quem proverá o cordeiro para o holocausto.” (Gn 22,8) Amor misterioso e paradoxal que inspira esta absoluta confiança em sua providência, poupando o sacrifício de seu querido filho: “Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus...” (Gn 22, 12) Amor de Abraão a Deus, disposto a sacrificar seu filho único em amorosa obediência.
O paralelismo entre o que aconteceu no “monte Moriá” e o que sucederia mais tarde no “monte Calvário” não se funda apenas nos detalhes exteriores; Isaac leva sobre seus ombros o feixe de lenha e Jesus levará sobre os seus o lenho da cruz, mas é na obediência e confiança incondicional de Abraão que encontramos em Jesus a mais perfeita realização. “O traço definidor da figura de Abraão é a confiança. É ela que impulsiona cada um dos movimentos e ações... A sua obediência é a expressão da sua confiança. Por meio desta sabe que não perderá o seu filho, embora não perceba de que modo, enquanto caminha com ele em direção ao monte.” (Bíblia Litúrgica) De Abraão, portanto aprendemos a amar e confiar em Deus em todo momento e situação de nossa vida.
O Apóstolo Paulo também nos fala de sua experiência do forte amor de Cristo, por isso, diz: “se Deus está conosco, quem estará contra nós? Quem não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com ele?” (Rm 831-32) e ele conclui dizendo “nada poderá nos separar do amor de Deus”. Isso mesmo repetia santa Teresa de Ávila (sec. XVI) às suas monjas: “Quem a Deus tem nada lhe falta, só Deus basta.” Nem sempre nos é fácil sentir e dizer o mesmo, mas a fortaleza de nossa fé deve suprir nestes casos a debilidade de nossa vontade e de nosso entendimento. O texto da Carta aos Romanos (cf. Rm 8, 31-34) nos apresenta de uma forma lírica, como um hino o amor de Deus que se nos revelou em Cristo, em sua vida e em seus sofrimentos. Porque é nos sofrimentos onde a prova do amor chega a seu ponto culminante, deixa de ser romântico e se faz realidade a essência do amor: dá-lo e oferecê-lo todo. Deus fez assim por meio de Cristo, seu Filho.
Assim o amor de Deus à humanidade chega ao extremo. O Deus que poupou Isaac o filho de Abraão, agora “não poupou seu próprio Filho, mas o entregou à morte por nós.” Esta afirmação não pode ser entendida literalmente, porque resultaria revelando a imagem de um Deus sem entranhas, sem coração. A morte de Cristo não foi o Pai que a quis, os homens a quiseram. Deus o entregou no sentido de que não o defendeu e respeitou a decisão de seu Filho, afinal o Pai havia lhe encomendado uma missão que o levaria à morte. Mas, importa agora destacar as conclusões paulinas: o que nos deu seu Filho e com ele nos deu tudo, como não nos dará qualquer coisa? O que não poupou seu Filho por nós, como não nos perdoará? Se para salvar-nos deixou que condenassem seu Filho, como nos vai Ele condenar? Diríamos que Deus, entre seu Filho e nós, a nós preferiu. Como não esperar tudo dele?
Mas, Jesus experimentou o amor do Pai e o amor aos discípulos, “tendo amado os seus que estavam no mundo amou-os até o fim” (Jo 13,1b), por isso pode abraçar o sofrimento, a cruz com decisão e liberdade. Depois do primeiro anúncio da sua paixão (cf. Mc 8, 31-33) Jesus lhes revela o esplendor de sua divindade. O Evangelho de São Marcos nos apresenta a transfiguração do Senhor diante de Pedro, Tiago e João (cf. Mc 9.2-10) seis dias depois de ter-lhes anunciado a sua paixão, morte e ressurreição. Naquele momento, como nos diz também o texto evangélico: “Pedro, levando-o a parte repreendeu Jesus, e Ele repreendeu a Pedro, dizendo: “Fique longe de mim, Satanás.” (cf. Mc 8,32-33) É neste contexto, que devemos entender a transfiguração do Senhor, como a resposta de Jesus aos seus discípulos.
O prefácio da missa deste domingo da transfiguração diz claramente qual é a mensagem deste dia: “Tendo predito aos discípulos a própria morte, Jesus lhes mostra, na montanha sagrada, todo o seu esplendor. E com o testemunho da Lei e dos Profetas, simbolizados em Moisés e Elias, nos ensina que, pela Paixão e Cruz, chegará à glória da ressurreição.” (Missal Romano, Prefácio do 2º Domingo da Quaresma)
Como no relato do sacrifício de Isaac “A transfiguração fala também do Pai e do Filho. O Filho não é sacrificado, mas sim transfigurado, convertido em objeto de imenso amor, de máxima beleza. As figuras e as vozes de Moisés e de Elias, os grandes profetas do divino, perdem relevância diante dele. O Pai convida a que escutem seu Filho, que lhe obedeçam e persigam seu caminho. A transfiguração cessa quando o Espírito-Nuvem oculta o Mistério. Tudo parece indicar a subida para outro monte, o Calvário. Lá se mostrará outra grandeza e loucura: a loucura do Pai ‘que tanto amou o mundo que lhe entregou seu Filho único’ e permitiu que acontecesse a ‘grande Desfiguração’. E eis que os gritos do povo: ‘crucifica-o, crucifica-o’ lhe chegaram aos ouvidos. E a eles o entregou ‘para que o crucificassem.” Estamos tocando aqui o núcleo mais incompreensível e ilógico de nossas crenças. O cristianismo tem muito que ver com a ‘grandeza’ do sofrimento, com o amor provado até a última de suas possibilidades.” (Paredes, 2011)
É isso que impressiona e o que fascina no cristianismo o fato de o sofrimento nunca ser rejeitado, isto é, nunca ser considerado uma ilusão. É uma realidade acolhida com o coração, embora faça sofrer. Para o cristão o sofrimento e a morte não são o resultado de uma luta trágica que se deve afrontar com frieza. A morte do cristão segue as pegadas da morte de Cristo: um cálice amargo, porque fruto do pecado, a beber até o fim, porque é a vontade do Pai, morte que é uma vitória com aparência de derrota; morte que é vida, ressurreição.
Sabemos que há muitas formas de amar. A Liturgia hoje nos apresenta três formas de expressar o amor:
No olhar, no ouvir e na dor. Na transfiguração Pedro, Tiago e João viram Jesus transfigurado. Dizemos que os olhos são as janelas do amor: por isso entra o amor como um raio de luz pelos olhos e pelos olhos passa o raio do amor do coração até o exterior para incidir na pessoa amada: “Quanto te vi logo te amei!” Isto que ocorre com o amor humano acontece igualmente nas relações de amor entre a pessoa e Deus.
É igualmente doce ao ouvido escutar a voz da pessoa amada. Por isso o Pai convida aos discípulos a escutar Jesus para que através de suas palavras cheguem aos seus ouvidos as revelações do amor até a loucura da cruz. Escutar a voz do amado gera uma atitude de obediência. Daí que a autêntica obediência cristã coincide com a escuta da voz divina, que põe em movimento o desejo de fazer o que quer o amado.
É igualmente doce ao ouvido escutar a voz da pessoa amada. Por isso o Pai convida aos discípulos a escutar Jesus para que através de suas palavras cheguem aos seus ouvidos as revelações do amor até a loucura da cruz. Escutar a voz do amado gera uma atitude de obediência. Daí que a autêntica obediência cristã coincide com a escuta da voz divina, que põe em movimento o desejo de fazer o que quer o amado.
Mas há uma difícil relação entre o amor e a dor. Amar uma pessoa quando tudo está bem, quando há reciprocidade no amor, faz bela a vida e se olha o futuro com alegria e esperança, é fácil e até agradável. Mas, nas histórias e canções de amor, nem sempre é assim, “o amor é o ridículo da vida” (Herivelto Martins), “moro na filosofia, prá que rimar amar e dor?”... (Caetano Veloso) Nas histórias reais de amor: dor, sofrimento, provação, incompreensão batem de vez em quando à porta dos amantes. E se assoma a alma a tentação de duvidar do amor, de ver na dor um destruidor do amor. Por que acontecem estas coisas, se a dor nos desígnios de Deus não é senão uma face paradoxalmente diferente do amor? Não temos experimentado acaso que a dor e a provação são forças que purificam e potencializam a capacidade de amar do nosso coração? O amor e a dor são como os dois pólos necessários para que se produza energia psíquica e espiritual no ser humano. Não já se disse que uma pessoa que não sofreu, não amou e que dificilmente chegará a ser uma pessoa madura?
Mas, permitam-me recolocar o amor numa perspectiva mais ampla. Quando sentimos dentro de nós o amor de Deus e contemplamos sua grandeza corremos o perigo de ficarmos aí, sem sair ao encontro do irmão. A Quaresma, já dissemos isso, é encontro com Deus e com o irmão. “O grande mandamento do amor ao próximo exige e incita a consciência a sentir-se responsável por quem, como eu, é criatura e filho de Deus: o fato de sermos irmãos em humanidade e, em muitos casos, também na fé deve levar-nos a ver no outro um verdadeiro alter ego, infinitamente amado pelo Senhor. Se cultivarmos este olhar de fraternidade, brotarão naturalmente do nosso coração a solidariedade e a justiça, bem como a misericórdia e a compaixão... Que todos, à vista de um mundo que exige dos cristãos um renovado testemunho de amor e fidelidade ao Senhor, sintam a urgência de esforçar-se por adiantar no amor. Este apelo ressoa particularmente forte neste tempo santo de preparação para a Páscoa...” (Bento XVI)
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
Vários autores. Comentários à Bíblia Litúrgica, Portugal, Gráfica de Coimbra 2
Paredes, José Cristo Rey García. Liturgia da Palavra comentada, Ano A.B.C. São Paulo, Ave Maria, 2011
Mensagem de Bento XVI para a Quaresma, L’Osservatore Romano, Edição semanal em Português, 11 de Fevereiro de 2012
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