Pároco da Paróquia de Fátima
Campina Grande - PB
Iniciamos a Quaresma há poucos dias, a primeira parada neste itinerário até a Páscoa é o “deserto”. Hoje a Igreja nos introduz neste novo cenário litúrgico e nos convida a seguir os passos de Jesus até o deserto. Como aconteceu com o povo hebreu, Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto para ser tentado e conhecer o que havia em seu coração; Ele teve também que fazer o aprendizado de uma experiência religiosa que o levou a entrega total de sua vida na cruz. Essa também é a prova pela qual há de passar todo discípulo e discípula de Jesus.
O deserto é um lugar simbólico, ainda que para Jesus fosse real. Deserto significa para nós lugar de retiro, de reflexão, de prova, de ver-nos interiormente e, fundamentalmente, de encontrar-nos com Deus. Esse é nosso objetivo nesta Quaresma e sempre. Na nossa vida, às vezes, é necessário uma pausa e buscar a solidão ante Deus e ante o mais íntimo de nós mesmos. A Quaresma é tempo de reflexão e de nova construção pessoal. Queremos olhar para nosso interior e descobrirmos nossas debilidades e tentações, mas também encontrarmos com o Deus que nos sustenta.
Passar um tempo de deserto significa fazer um pouco de vazio e silêncio interior, reencontrar o caminho de nosso coração, privar-se do alvoroço e dos apelos exteriores para entrar em contato com as fontes mais profundas de nosso ser. A pessoa que entra em seu interior com sinceridade descobre em si mesmo forças, mas também cadeias que o sujeitam e não lhe deixam agir livremente. Bem vivida, a Quaresma é uma espécie de cura interior, de desintoxicação espiritual. Todos estamos um pouco intoxicados de superficialidade e exterioridade, muitas vezes desconhecemos ou ignoramos o que existe em nosso próprio coração.
A Quaresma é tempo de amor, “oferece-nos a oportunidade de refletir mais uma vez sobre o cerne da vida cristã: o amor. Com efeito, este é um tempo propício para renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e a partilha, pelo silêncio e o jejum, com a esperança de viver a alegria pascal.” (Bento XVI, 2012.)
Em um ambiente de flores e festa e com o nervosismo próprio da ocasião, o noivo diz à noiva: “recebe esta aliança em sinal de meu amor e da minha fidelidade”. E a noiva o confirma com as mesmas palavras. Isto é aliança, promessa e compromisso matrimonial. Aliança que compromete no amor e pelo amor. Não a aliança, talvez enganosa dos pactos entre nações interessadas por ambas as partes. Não um “toma lá, dá cá” de tantos acordos, é compromisso, é pacto de fidelidade entre duas pessoas que se amam.
O Senhor, desde que o homem lhe foi infiel, na figura de Adão, quis atraí-lo fazendo com ele promessas de aliança e fidelidade, para que ele acreditasse em seu amor, e cresse que Ele, o Senhor, trata-o com dignidade, como pessoa na qual confia e à qual se entrega por amor, e dele espera confiança, amor e fidelidade.
No Antigo Testamento, a primeira de três alianças é a de Deus com Noé, de que o Livro do Gênesis (cf. Gn 9,8-15) faz uma reflexão. Noé se converte em pai da humanidade com o mesmo direito que Adão: por isso Deus estabelece com ele uma aliança, o mesmo que havia feito com o primeiro homem e o abençoa da mesma maneira que o antepassado primogênito. Do mesmo modo que as outras alianças seladas por Deus com Abraão e com Moisés, a iniciativa vem do Senhor e só Ele se compromete; é uma mostra de sua bondade; tem uma repercussão universal. Cada uma destas três alianças está marcada por um sinal: a circuncisão de Abraão, o sábado como dia santo de Moisés no Sinai e o arco-íris de Noé. O “arco-íris”, não é a explicação de um mito, mas sim uma reflexão simbólica e poética acerca da natureza. O sinal recorda ao Deus do universo a sua promessa e ao povo é um testemunho de que Deus é quem mantém a ordem do mundo. Na Carta de Pedro (cf. 1Pd 3,18-22) o autor recorda que o fato de Noé ter construído uma arca, na qual se salvou ele e a sua família, converteu-se em símbolo do Batismo. Em ambas as ocasiões a salvação alcança-se por meio da água.
Através da Aliança, o Senhor se compromete esponsalmente a estar ao lado do povo “nas alegrias e nas tristezas, na saúde e na doença... todos os dias de sua vida”. Nossa vida cristã está, portanto fundada neste mútuo compromisso de amor e fidelidade entre o Senhor e nós, como a vida de cada matrimônio está fundada em um compromisso de fidelidade e amor.
São Marcos em dois versículos muito curtos (cf. Mc 1, 12-15) nos conta em seu Evangelho como foi a experiência de Jesus no deserto. Que Ele esteve no deserto, como esteve João Batista, não é um fato que devamos duvidar. Da mesma maneira que o deserto é um tempo de tentação, é também um tempo de purificação. Jesus se deixa submeter a esta prova que purificará suas intenções, clarificando qual vai ser seu Messianismo. Os quarenta dias sinalizam, evidentemente, os quarenta dias do dilúvio, por isso se escolheu para hoje o texto do Gênesis sobre o dilúvio, ou aos quarenta anos do povo caminhando pelo deserto até a terra da liberdade.
Marcos não detalha as tentações, como o fazem Mateus e Lucas. No seu relato aparecem anjos que servem a Jesus, que lhe ajudam a sobreviver a esta situação; aparece satanás pondo à prova Jesus para fazê-lo duvidar e que desista de seu propósito de anunciar o Reino de Deus. E finalmente, aparece o protagonista principal: o Espírito, aquele que causa toda esta situação, pois é o Espírito quem o conduz ao deserto. O mesmo Espírito que desceu sobre Jesus no batismo, é o que o conduz ao deserto para ser tentado. Jesus ia iniciar uma nova vida. Depois do batismo nem se recolheu a estudar, nem organizou com seu povo uma festa de despedida. Deixou-se levar pelo Espírito. O Espírito leva Jesus ao deserto, mas não o deixa só, sustenta-o na tentação e também o fará ao longo de toda sua vida, fortalecendo-o em sua missão.
O mestre se deixa conduzir, dá oportunidade ao Espírito. Na verdade, Jesus não foi ao deserto para ficar nele, fugindo das pessoas e do mundo. Assim o fizeram, efetivamente, muitos eremitas e anacoretas nos primeiros séculos do cristianismo. Porém Jesus, não. O deserto só foi para Ele um tempo de preparação para sua vida pública. “Houve um momento inicial no seu ministério em que Ele se sentiu tentado a abandonar a Aliança com Deus, seu Pai. Foi um tremendo obscurecimento. Não via com clareza onde seu Abbá queria levá-lo e ele sentia dentro de si certo desejo de ‘autonomia’, de ‘independência’. Jesus viu-se interiormente invadido por fantasmas, demônios interiores que lhe mostravam outras possibilidades, outras formas de estar no mundo... A alternativa que lhe acudia à mente e ao coração era a de tomar Ele mesmo as rédeas da sua própria vida e provar um caminho de liberdade, como fez o filho pródigo da parábola. No fundo, a tentação contra a Aliança consiste em ‘não escutar’ e em ‘separar o coração’ do ‘amarás com todo o coração... a alma e as forças’. A tentação consiste em amar muito mais a própria vida e querer libertar-se dos aparentes impedimentos do que contar com Deus e com os outros.” (Paredes, 2011.)
Jesus sofre as tentações de satanás durante quarenta dias, em um lugar hostil e vivendo entre os animais ferozes. Nesta passagem há um contraste muito marcante, enquanto Jesus é tentado, vive pacificamente entre as feras e é servido por anjos. Marcos não se preocupa em dar-nos a conhecer as tentações e as vitórias de Jesus, pois entende que se trata do começo de uma luta decisiva contra os poderes do mal, que ele se ocupará ao longo de todo seu evangelho. Foi tentado também no Horto das Oliveiras e na Cruz, mas venceu.
Deus não é um agente tentador. O disse muito claramente o apóstolo Tiago, em sua Carta (cf. Tg 1,12ss) “Ninguém, ao ser tentado, deve dizer: ‘É Deus que me está tentando’, pois Deus não pode ser tentado pelo mal e tampouco ele tenta ninguém. Cada qual é tentado por sua própria concupiscência, que o arrasta e seduz.” (Tg 1,13-14) A realidade é que há muitos cristãos que culpam Deus por todo mal que lhes ocorre. “A vida do cristão não está isenta de provas externas como a doença e o sofrimento, as incompreensões e as zombarias, nem das tentações que induzem ao pecado... De onde vem o mal? É a pergunta que acompanha a vida de cada pessoa, e não só dos crentes. A resposta sugerida por Tiago é comum a fé hebraico-cristã: o mal físico, mas sobretudo o de natureza moral, chamado “pecado”, não é obra de Deus. O mal/pecado provém da opção livre das pessoas aderirem à concupiscência, ao desejo desenfreado e rebelde que leva a não aceitar os limites próprios da criatura. Se não se aprende a mantê-la debaixo de controle e a dominá-la, a concupiscência concebe/gera/produz o pecado que leva à morte. Os cristãos sabem, pelo contrário, que são gerados para a vida pela Palavra da Verdade.” (Casarin, 2011.)
Portanto, ao analisarmos com objetividade o curso do que nós chamamos tentações veremos que a maior parte das tentações são fantasias, mais ou menos adaptadas aos desejos do tentado, mas há também um componente de engano, de simulação maliciosa, que, sem dúvida, leva o selo do “rei da mentira”. A transformação dessas fantasias ou desejos em algum aspecto real produzirá maldades reais e plenas de dano.
São tempos difíceis para falar de tentação e pecado. Parece que não está na moda crer nestas coisas. A tentação nos parece algo tão antigo. “Parece que a cultura contemporânea perdeu o sentido do bem e do mal, sendo necessário reafirmar com vigor que o bem existe e vence, porque Deus é ‘bom e faz o bem’(Sl 119/118, 68). O bem é aquilo que suscita, protege e promove a vida, a fraternidade e a comunhão. Assim a responsabilidade pelo próximo significa querer e favorecer o bem do outro, desejando que também ele se abra à lógica do bem; interessar-se pelo irmão quer dizer abrir os olhos às suas necessidades.” (Ibid. Bento XVI.) Mas, igualmente temos que admitir a capacidade humana para o mal.
Cada dia destes quarenta da Quaresma teremos que fazer um esforço de nos aproximarmos mais de Deus, para crescer com mais sinceridade na fé e levarmos com mais simplicidade nossa vida. Não deixemos que esta Quaresma seja uma a mais, que não nos toque o coração e nos volte mais para Deus e ao amor ao próximo na caridade perfeita. Que o Espírito que impulsionou Jesus ao deserto, conduza-nos também, auxilie-nos na luta contra o mal e nos prepare para celebrar a Páscoa, renovados no Espírito!
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
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