segunda-feira, novembro 21, 2011

Cristo, incógnito e escondido no pobre

 Padre José Assis Pereira
Paróquia Nossa Senhora de Fátima
Diocese de Campina Grande/PB
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A Igreja celebra hoje a solenidade de Jesus Cristo Rei do Universo, festa criada pelo Papa Pio XI em 1925, num contexto social, político e religioso muito diferente do de hoje, como resposta ao comunismo ateu. A festa é situada como fronteira de tempos e espaços, final e pricípio, do Tempo Comum ao Advento que marca um novo Ano Litúrgico. Mas a realeza de Cristo surpreende. Não é de poder, e sim de mansidão. Não é de mando, e sim de serviço. Não é de luxo e ostentação, senão de pobreza e humildade. Daí, pois, a singularidade desta celebração que devemos assumir com emoção. E já iniciarmos, pois, o tempo do Advento, de alegre esperança da vinda deste reino.


É conveniente orientar esta festa para a proclamação da soberania de Deus por Jesus. Sabemos que o centro da pregação de Jesus é o reino de Deus. Na primeira etapa de seu ministério, Jesus o anuncia, sobretudo, através de suas parábolas que, por este motivo, foram chamadas de “parábolas do reino”. Este reino também se faz presente através dos sinais: curas, exorcismos, milagres e intervenções na natureza e que por isso, se lhes chama “sinais do reino”. Mas, ele se realiza com poder singular na “Kénosis”, humilhação da cruz e na exaltação da ressurreição. E mais, ele se atualiza constantemente com a força do Espírito e se converte em objeto de esperança final para os cristãos e para a humanidade inteira. Penso que esta perspectiva, acima exposta ainda que brevemente, dá um sentido autêntico a esta solenidade que hoje celebramos.

As leituras desta festa criam um clima escatológico do qual surge a grande figura final de Deus como Pastor, e de Cristo como Rei-Pastor e Juiz. O profeta Ezequiel (cf. Ez 34, 11-12,15-17) descreve Deus, que continua pastor do seu povo, na pátria ou no exílio. Como o pastor, o rei, o messias que julgará e salvará as ovelhas de seu rebanho. “Assim diz o Senhor: Eu mesmo cuidarei do meu rebanho e dele me ocuparei, como o pastor cuida do seu rebanho...” (Ez 34, 1-2) É verdade que há pastores sem coração, mas O Senhor de Israel não é um rei sem coração, como os que até agora conduziram o povo e sim aquele que entregará sua vida pelas ovelhas como verdadeiro pastor. O profeta apresenta a alternativa aos dirigentes de seu povo, aos reis, sacerdotes e classe dominante: o Senhor será um pastor de verdade; “Eu mesmo apascentarei o meu rebanho, eu mesmo lhe darei repouso... buscarei a ovelha que estiver perdida, reconduzirei a que estiver desgarrada, pensarei a que estiver fraturada e restaurarei a que estiver abatida... eu julgarei entre ovelha e ovelha, entre carneiros e bodes.” (Ez 34, 15-17) “Cristo baseou-se nesta passagem para definir uma das características de sua pessoa e dos aspectos da sua missão. Dizendo ‘eu próprio irei... cuidarei...’, Ezequiel inaugurou a nova teocracia divina, na qual Cristo está sentado à direita do Pai até que ponha todos os seus inimigos – os falsos pastores – como escabelo dos seus pés.” (Bíblia Litúrgica)

Por sua parte, o apóstolo Paulo na Carta aos Coríntios (cf. 1Cor 15,20-26.28) apresenta aos que negavam a ressurreição dos mortos, Cristo Ressuscitado como o vencedor do pecado e da morte que “entregará o reino a Deus Pai depois de ter destruido todo principado, toda autoridade, todo poder. Pois é preciso que ele reine.” (1Cor 15, 24-25).

Junto com o evangelho que proclamamos domingo passado (cf. Mt 25,14-30) a perícope de hoje, a parábola do juízo final (cf. Mt 25, 31-46), faz parte do assim chamado “discurso escatológico”. A perspectiva escatológica e de futuro perpassa todo o relato. O fragmento tem uma forma literária narrativa plástica muito viva, uma verdadeira dramatização que revela o que acontecerá no final dos tempos. Mateus, sem dúvida é quem mais amplia e explicitamente situa Jesus, ao final dos tempos, como Rei-pastor e Juiz do universo. A cena descreve Jesus na imagem do pastor: “Quando o Filho do Homem vier em sua glória, e todos os anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória. E serão reunidas em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos bodes, e porá as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda.” (Mt 25,31-33)

Num cenário imponente, Cristo diante de todas as nações, mostrará seu poder régio: será o momento em que o reino de Deus, iniciado na história como um grão de mostarda, se expande em sua infinita potencialidade. O Juízo Final é uma verdade de fé, “de fato, todos haveremos de comparecer diante do tribunal de Deus.” (Rm 14,10) “É diante de Cristo – que é a Verdade – que será definitivamente desvendada a verdade sobre a relação de cada homem com Deus. O Juízo Final há de revelar até as últimas consequências o que um tiver feito de bem ou deixado de fazer durante sua vida terrestre. (...) O Juízo Final revelará que a justiça de Deus triunfa de todas as injustiças cometidas por suas criaturas e que seu amor é mais forte que a morte. A mensagem do Juízo Final é apelo à conversão... o Juízo Final inspira o santo temor de Deus. Compromete com a justiça do Reino de Deus.” (Catecismo da Igreja Católica n.1039-1041). Este juízo é encenado na parábola de modo a por em evidência a “caridade”, o amor como virtude central e resumo de todas as virtudes e de toda a lei de Deus. Como diz S. João da Cruz, o grande poeta místico do séc. XVI: “No entardecer de nossas vidas, seremos julgados pelo amor.”

O Papa Bento XVI comentando este evangelho em sua catequese disse que “São Mateus colocou esta maravilhosa parábola do juízo Final e realeza universal de Cristo Juiz, imediatamente antes da narração da Paixão. As imagens são simples, a linguagem é popular, mas a mensagem é extremamente importante: é a verdade sobre o nosso destino último e sobre o critério com o qual seremos avaliados. “Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me.” (Mt 25,35-36) Quem não conhece esta página? Faz parte de nossa civilização. Marcou a história dos povos de cultura cristã: a hierarquia de valores, as instituições, as numerosas obras benéficas e sociais. De fato, o reino de Cristo não é deste mundo, mas realiza todo o bem que, graças a Deus, existe no homem e na história. Se pomos em prática o amor ao nosso próximo, segundo a mensagem evangélica, então fazemos espaço para o senhorio de Deus, e o seu reino realiza-se no meio de nós. Se ao contrário, cada um pensa só nos próprios interesses, o mundo vai inevitavelmente em ruínas.” (Bento XVI, Angelus, 23.11.2008)

Desde a encarnação do Filho de Deus na natureza e condição humana até sua última palavra em parábolas e em pregação, tudo evidencia esta realidade: Deus tem preferência pelos pobres, pelos pecadores, pelos perseguidos, pelos que sofrem. Com Jesus é levada a plenitude a pregação profética que advertia das injustiças contra os pobres. São várias as passagens do evangelho nas quais se diz redondamente que o primeiro e principal próximo é o pobre e que ele é a medida do amor a Deus. Mas a melhor comprovação da identificação de Deus com o pobre no-la dá o evangelho de São Mateus nesta parábola do juízo final. O texto é desconcertante e questionador, pois identifica Jesus com os pobres e convoca a reconhecer o seu rosto no rosto dos pobres: “Em verdade vos digo cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes... Todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses pequeninos foi a mim que o deixastes de fazer.” (Mt 25, 40.45)

“Essa passagem do Evangelho é fundamental para compreender a relação de Jesus com os pobres e, consequentemente, a relação dos cristãos, seguidores de Jesus, com os pobres. Jesus garante sua presença em todo tipo de sofrimento humano: nos famintos e sedentos, nos sem roupa e sem teto, nos enfermos e encarcerados, nos pequenos e perseguidos. Ele defende a causa dos marginalizados denunciando a ordem injusta que gera a pobreza. Optar pelos pobres é lutar pela justiça. Dom Oscar Romero, bispo salvadorenho assassinado em 1980, afirmava em uma de suas homilias: ‘Existe um critério para saber se Deus está próximo ou distante de nós; todo aquele que se preocupa com a fome, a nudez do pobre, do desaparecido, do torturado, do prisioneiro, de todos os que sofrem, está próximo de Deus’. Todo gesto em direção ao outro, de aproximação aos mais pobres, decide a proximidade ou a distância de Deus... Nossas atitudes em relação aos que estão em situação de miséria indicam se de fato acolhemos Jesus em nossa vida... Cristo escolheu estar presente lá onde ninguém imagina que poderia estar, desse modo, entrar em relação com os que são excluídos, com o objetivo de mudar sua situação de miséria, é entrar em relação com Cristo.” (Oliveira, 2011.)

No encontro com o Juiz universal, Jesus antecipa as perguntas de seu interrogatório. Ele nos pedirá contas não só do mal que fizemos, mas também do bem que devíamos ter feito e nos omitimos, por falta de amor. “Raul Follereau, um dos apóstolos modernos dos leprosos, escreveu certa vez: ‘Sonhei que um homem se apresentava diante do Senhor, no Juízo Final. Contente, o homem apresentava as mãos e dizia: Olha, Senhor, observei a tua lei, nada fiz de desonesto, de mau, de impiedoso. Senhor, as minhas mãos estão limpas! E o Senhor olhou para o homem e disse: Sem dúvida, estão limpas, mas estão também vazias!’” (Neotti, 2001.) Jesus de uma maneira plástica apresenta a todos nós o que se deve fazer para ser colocado à direita do Juiz: ter encontrado o próprio Jesus escondido em todos aqueles necessitados do amor de Deus, eis o critério principal da salvação. Mas, cuidado! A caridade cristã não pode ser confundida como mera filantropia, é amor ditado pela fé. É a fé no Cristo que nos faz descobrir no próximo, no outro, um filho ou filha de Deus, um irmão ou irmã, uma imagem de Cristo, ainda que por vezes esteja muito desfigurada. Incógnito e escondido está Jesus em cada ser humano necessitado do amor do Pai. Nossa missão é servir a Jesus escondido em todas as pessoas sem perguntas prévias.

Penso que é preferível encerrar esta reflexão apresentando o aspecto positivo do juízo universal: “Vinde benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo.” (Mt 25, 34) Para tanto, faz-se necessário escolher, optar, ao longo de todo o trajeto da nossa história; que tem uma inexorável consequência final, pelo serviço, o compromisso com todos aqueles nos quais está oculto, mas presente, o próprio Jesus. A urgência e a força deste Evangelho é mais necessária hoje que nunca.



Bibliografia:

Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.

Vários autores. Comentários à Bíblia Litúrgica, Portugal, Gráfica de Coimbra 2

Catecismo da Igreja Católica, Edição Típica Vaticana. São Paulo, Loyola, 2000

Oliveira, Pedro A. Ribeiro. (org.) Opção pelos pobres no século XXI. São Paulo, Paulinas, 2011

Neotti, Clarêncio. Ministério da Palavra, comentários aos Evangelhos dominicais e festivos, Ano A. Petrópolis, Vozes, 2001

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