Padre José Assis Pereira Soares
Pároco da Paróquia Nossa Senhora de Fátima/Campina Grande-PB
“Cantarei ao meu amado o cântico do meu amigo para a sua vinha...” (Is 5,1) assim começa um dos mais belos textos, em forma de cântico. O “cântico da vinha”, poema composto pelo profeta Isaías grande mestre da profecia, no começo de seu ministério (séc. VII a.C.). É uma peça poética e ao mesmo tempo não se trata de simples poesia, porque a poesia é sentimento puro, e em Isaías, teologia pura.
Na cultura judaica, a “vinha” é um símbolo do amor, uma imagem aplicada ao povo de Israel, encontrada frequentemente na Bíblia. O amigo, esposo da vinha tem amado e mimado muito a sua vinha. Pode parecer extravagante que o amigo tenha por esposa uma “vinha”, mas o profeta viu nesta imagem um símbolo privilegiado para expressar essa história de amor que Deus quis escrever com o seu povo, isto é, a história da salvação. Não nos esqueçamos, como disse o profeta, este é um canto de amor. É a forma que Deus tem, por meio de seu amigo o profeta, de falar ao coração do povo, sua amada.
Mas, a vinha escolhida e amada é depois rejeitada, porque não deu ao senhor o que ele esperava, deu uvas azedas. E o Senhor pronuncia esta sentença sobre ela e contra ela: “Agora vos farei saber o que farei da minha vinha! Arrancarei a cerca para que sirva de pasto, derrubarei o muro para que seja pisada; reduzi-la-ei a matagal: não será mais podada nem cavada: espinheiros e ervas daninhas nela crescerão...” (Is 5, 5-6) A conclusão é que ele abandonará Israel a sua própria sorte, pois “esperava o direito, mas o que produziram foi a transgressão, esperava a justiça, mais o que apareceu foram gritos de desespero” (Is 1,7). “’Justiça’ e ‘retidão’, quem ouve estas palavras pode até confundi-las. Se for observada superficialmente, também a uva amarga pode parecer uva de boa qualidade, mas a realidade é muito diferente. Há pessoas que têm profunda convicção de terem uma fé muito sólida. O que elas produzem, porém, tem somente a aparência das obras de fé. Se forem examinadas atentamente, descobre-se, que outra coisa não são senão ritualismo, exterioridade, futilidade, espetáculo. Acontece também que o que se considera ‘justiça’ de fato se reduz à ‘aproveitamento’ e ‘opressão’. Na alegoria da vinha contrapõem-se duas atitudes: a de Deus e a de Israel. Deus executa gestos de amor e o povo responde com ritos, com manifestações superficiais de religiosidade.” (Armellini, 1998)
Jesus atualizou este texto também numa história de amor, “a parábola da vinha e dos vinhateiros homicidas” (cf. Mt 21,33-43) que está em continuidade com os textos do evangelho de São Mateus que mostram as polêmicas de Jesus com os dirigentes judeus antes da paixão, pondo um ponto final nesta longa polêmica que começou na Galiléia.
O dono de uma vinha arrenda-a a uns trabalhadores e viajou. Envia depois de algum tempo seus empregados para recolher os frutos, porém os meeiros maltratam os enviados e, quando vem o próprio filho do proprietário da vinha tramam a sua morte e executam-no fora da vinha. Perguntou Jesus às lideranças religiosas de Israel: “Pois bem, quando vier o dono da vinha, que fará com esses vinhateiros?” (Mt 21,40) Aí a ameaça que o profeta Isaías lançara em seu “cântico da vinha” toma corpo e se dirige aos contemporâneos de Jesus, e por extensão a nós: “Eu vos afirmo que o Reino de Deus vos será tirado e confiado a um povo que o fará produzir seus frutos.” (Mt 21, 43)
J. Jeremias em sua interpretação das parábolas de Jesus assim nos ensina: “Esta parábola que se liga ao ‘cântico da vinha’ de Is 5,1-7, é a única pelo seu caráter alegórico entre as parábolas sinóticas de Jesus: a vinha é manifestamente Israel, os empreiteiros são os chefes e líderes, o dono do campo é Deus, os enviados são os profetas, o filho é Cristo, a punição dos vinhateiros figura a rejeição de Israel, o ‘outro povo’ (Mt 21,43) é a Igreja dos pagãos”. (Jeremias, 1980.)
A vinha é uma clara imagem do povo de Israel e pode sê-la também da Igreja e de cada um de nós. O cristão é uma pessoa enxertada em Cristo pelo batismo, por isso, deve dar frutos bons. Assim como o Pai enviou ao mundo Cristo seu Filho para cumprir a missão redentora, assim o mesmo Cristo envia especialmente aos apóstolos, a cumprir uma missão. Mas, também a nós escolheu o Senhor para manifestar seu nome e sua glória, também a nós ele cuidou e, em mais de uma ocasião, demonstrou-nos seu amor e seu perdão. Daí ser muito importante que escutemos o que Deus quer de sua vinha, que somos nós. Se nos comportarmos como os meeiros da parábola o Reino de Deus nos será tirado e dado a outros.
“Este trecho, não foi conservado no Evangelho para levar-nos a imprecações contra a infidelidade dos judeus, mas para lembrar aos cristãos de todos os tempos que existe um perigo de repetir o mesmo erro dos príncipes dos sacerdotes e dos guias espirituais do povo de Israel. Cada um de nós deve considerar-se um operário da vinha. De nós são exigidos os frutos. Se não soubermos produzi-los, seremos condenados como os agricultores da parábola. Vamos responder com sinceridade: quais são os frutos que produzem hoje as nossas comunidades? Produzem justiça, amor, paz, serenidade? Produzem felicidade para todas as pessoas ou se restringem a mostrar solenes liturgias, feitas de palavras e de gestos desligados da vida? Neste segundo caso não seriam semelhantes a Israel, videira estéril, ou aos chefes incapazes de compreender e de responder às exigências de Deus? também hoje existe o perigo de pretenderem os guardas da vinha se transformar em ‘senhores’. O que pensar, por exemplo, a respeito dos responsáveis pelas nossas comunidades, que fazem o que bem entendem, impõem em nome de Deus o que se passa na própria cabeça, não dão ouvidos a ninguém e não se preocupam em saber qual é a vontade do único e legítimo senhor da vinha?” (Ibid. Armellini.)
Tenhamos consciência de que esta ameaça de nos tirar a custódia do Reino de Deus atinge todos nós. Que categoria de cristianismo estamos vivendo? É um cristianismo estéril, ou pelo contrário, frutífero? Seremos capazes de dar os frutos que Deus e o mundo esperam de nós cristãos? Somos os cristãos de hoje defensores da justiça e do direito dos mais pobres? Como atuamos diante da crise econômica e, sobretudo moral que afeta especialmente aos menos favorecidos?
O conflito e as tensões de Jesus com a religião judaica de seu tempo é algo que deve ter sempre bem presente todos os cristãos e uma das coisas mais inquietantes que surge da leitura deste evangelho é se entre nós, entre os fieis e, sobretudo entre aqueles que têm responsabilidade sobre o rebanho do Senhor há fariseus e farisaísmo. E se esta tendência nefasta nos impede de escutar, hoje também, a autêntica mensagem de Jesus de Nazaré, Filho do Deus compassivo e misericordioso que é o único proprietário dessa grande vinha que é a humanidade inteira.
Também dá-nos medo pensar que alguém, que está muito perto de nós, nos esteja apontando o caminho real até Deus e nós o recusemos por falta de ortodoxia. Também Jesus fala que o povo de Israel foi infiel a seu Senhor; excluiu e matou os profetas que, em nome de Deus, pregavam um caminho de virtude e santidade e terminou matando o próprio Filho que o Pai lhes havia enviado como caminho, verdade e vida. Também nós hoje não temos escutado a Palavra de Deus ou podemos escutá-la e pensar que ela está dirigida aos outros e não a cada um de nós. Isso merece que nossa oração se dirija a Jesus para pedir-lhe, a humildade de estar completamente abertos a todas as mensagens que se pronunciem na linguagem de Deus, no amor.
Este domingo nos convida a fazer uma reflexão sobre o tempo e sobre os frutos. A pergunta que eu devo me fazer cada dia é: estou respondendo com generosidade e com amor ao amor que Deus me tem dado? Será que o Senhor se verá obrigado a retirar-me seu amor por minha permanente falta de fidelidade? Às vezes nos advertimos que o tempo de nossa vida vai passando e, quando queremos contabilizar os frutos que temos dado para o bem do mundo, da Igreja e das pessoas à nossa volta, nos deparamos com um resultado tão pífio, uma colheita tão exígua, ou com frutos só aparentemente bons, exterioridades tolas, fruto isso sim, de nossa ridícula vaidade. O que se passou? Temos vivido como uma vinha distraída sem dar-se conta que sua missão era produzir uvas doces? Ou temos vivido como os vinhateiros que pensaram mais em si mesmos que no amor do dono à vinha? O tempo segue passando, mas enquanto há vida, há esperança de conversão e de transformação. Nem sempre os frutos do cristão serão imediatos, mas não cabe duvidar que “aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque sem mim, nada podeis fazer.” (Jo 15,5) Deus espera muito de nós. Somos sua vinha e ele se alegra e é glorificado quando produzimos muito fruto. “Meu Pai é glorificado quando produzis muito fruto.” (Jo 15,8) Cultivemos com cuidado nossa vinha, para que a seu tempo demos frutos maduros para o seu Reino.
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002
Jeremias, J. As Parábolas de Jesus. São Paulo, Paulinas, 1980
Armellini, Fernando. Celebrando a Palavra, Ano A. São Paulo, Ave Maria, 1998
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