Padre José Assis Pereira Soares
Paróquia de Nossa Senhora de Fátima
Campina Grande/PB
Comunidade, lugar do perdão e da oração
Na comunidade eclesial, na família ou nas relações interpessoais: tensões, conflitos ou desentendimentos são inevitáveis. Como a comunidade cristã reconhece e lida com o que errou? A Igreja hoje rodeada de tantos conceitos de tolerância e de não exclusão tem consciência de que não é perfeita; não é uma “seita de puros”, comunidade de perfeitos, mas de homens e mulheres que, em meio a limitações e fraquezas humanas, caminham como irmãos e irmãs que se ajudam a seguir o Senhor. Mas ela deve ser reconciliadora. Para a sua própria sobrevivência a comunidade cristã busca restabelecer a unidade perdida e a convivência fraterna através da correção dos seus membros entre si, a “correção fraterna”, um preceito evangélico e uma tradição da própria Igreja. A prática pedagógica da correção fraterna é um meio de conversão e de solidariedade com o outro. A Igreja toda tem o absoluto dever de viver em permanente estado de conversão e jamais se acomodar ao mal, ao pecado, por isso agirá sem radicalismo, com tolerância para com o pecador penitente. Os cristãos, a Igreja sempre teve consciência que deveria ser no mundo um exemplo e instrumento do perdão e da reconciliação.
A Palavra de Deus hoje nos adverte que a salvação é incompatível com toda classe de individualismo e egoísmo. Não há justiça em quem não se sente responsável pela desgraça de seu próximo, ainda que ele mesmo a tenha buscado. Eu sou o vigia de meu irmão. Deus o pôs ao meu lado para que eu tome conta dele, porque é a vontade de Deus que ninguém se perca; somos vigias ou responsáveis uns pelos outros nesta aventura de salvação.
O profeta Ezequiel, aparece entre os primeiros exilados para a Babilônia por Nabucodonosor, no ano de 597. O profeta vive a experiência de ver Jerusalém sitiada e destruída pelos babilônios e de viver no exílio junto com os deportados. Mas, em meio à destruição e a desesperança Ezequiel aplica a si próprio a bela imagem, da sentinela ou vigia que guarda a cidade. “A ti filho do homem, te pus como atalaia para a casa de Israel. Assim, quando ouvires uma palavra da minha boca, hás de avisá-los de minha parte...” (Ez 33, 7)
Na missão de Ezequiel Deus parece responder àquela pergunta que Caim lançava quando fingiu não saber onde estava seu irmão Abel, que ele o havia matado: “Acaso sou eu o vigia de meu irmão?” (Gn 4,9b) Tais palavras proferidas diante de Deus, que é seu Pai, matam de vez o irmão. Deus continua a nos perguntar, a nos incomodar: “Onde está o seu irmão?” (Gn 4,9) Ou eu me torno responsável por meu irmão ou o excluo da minha vida, exatamente como se o matasse.
“Ezequiel compreendeu a sua missão. Estava muito habituado a ouvir os gritos das sentinelas quando se avizinhava algum perigo. O povo também compreendeu a imagem, bem como o novo significado de profeta. A partir de agora, ele será isso mesmo: a sentinela de um povo sem cidade e sem muralhas, o atalaia que há de avisar dos perigos que espreitam o povo, não de fora – estranho paradoxo – mas de dentro, do próprio Senhor. No desempenho de sua missão deverá interpelar tanto o justo como o ímpio; ao primeiro, para fortalecê-lo; ao segundo, para que se converta. O que era mais difícil de assimilar, era que a missão de Ezequiel tinha por alvo cada um deles, direta e imediatamente, que deviam dar uma resposta positiva ou negativa a nível pessoal e individual, porque coletivamente, estavam condenados. Um profeta é isso mesmo. Alguém que sabe insistir, a tempo e fora de tempo, segundo as exigências de Deus.” (Bíblia litúrgica)
Segundo a tradição bíblica o profeta não é um adivinho, nem um futurólogo fatalista que prediz catástrofes inevitáveis, mas alguém que se sente chamado por Deus para pregar em seu nome, a conversão das pessoas para evitar males futuros. O interessante é que a responsabilidade do profeta não termina aqui, ele deve seguir mais adiante. À sentinela basta dar o alarme; se o escutam ou não, já não é sua responsabilidade. Não é assim o profeta: ele deve advertir do mal que se avizinha e deve convencer seus ouvintes, porque ele fala como porta-voz de Deus e anuncia a sua Palavra em sua integridade, seja uma palavra de esperança ou de julgamento. Ele expressa o desejo de Deus de salvar a humanidade e que ninguém se perca. E o profeta, como cada um de nós, é responsável de ter ou não anunciado a todos a Palavra de Deus.
O Evangelho escrito por Mateus se caracteriza por uma narração da atuação de Jesus composta por uma serie de ensinamentos em forma de discursos, relacionados com a vida das primeiras comunidades cristãs. O capitulo 18 se chamou de "discurso eclesiástico", porque contém normas de comportamento básicas de uma comunidade cristã: perdão, compreensão, solidariedade. Hoje consideraremos duas indicações deste discurso (cf. Mt 18,15-20): a chamada “correção fraterna” e o valor da oração em comum.
“Alguém já disse que a correção fraterna é um preceito evangélico, na maioria das vezes, não observado, que é muito difícil que se possa encontrar um homem capaz de cumprir de maneira devida a correção do seu próximo. De fato, quase não se pratica a correção fraterna. Somos capazes de ficar indignados e de sentir-nos escandalizados; somos capazes de criticar e espalhar aos quatro ventos o erro do próximo, mas achamos difícil corrigir como irmãos, de acordo com o método e o espírito que nos são propostos pelo Evangelho.” (Cencini, 2003.)
“Se teu irmão pecar, vai corrigi-lo a sós. Se ele te ouvir ganhaste o teu irmão. Se não te ouvir, porém, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda questão seja decidida pela palavra de duas ou três testemunhas. Caso não lhes der ouvido, dizei-o à Igreja. Se nem mesmo à Igreja der ouvido, trata-o como o gentio ou o publicano”. (Mt 18,15-17)
A correção fraterna está a serviço do cuidado do irmão que pecou. “Diante do mal, efetivamente, torna-se natural a rejeição ou a condenação. Sentimo-nos muito justos ou pecadores sem esperança; juízes inflexíveis ou acusados sem defesa; fingimo-nos indiferentes ou combatemos guerras impossíveis. Correção fraterna quer dizer, porém, aprender a conviver com o mal próprio, e depois também com o dos outros. Ou melhor, é uma maneira de carregar nas costas a fraqueza do irmão. E acaba por se tornar a mais clara e a mais convincente manifestação do amor fraterno, porque não há amor maior do que aquele de quem vai ao encontro do irmão pecador, de quem se sente responsável e dá sua contribuição para que ele se emende, de quem se deixa corrigir e corrige o outro, de quem carrega o outro nas costas e se deixa carregar.” (Ibid. Cencini.)
Com o ensinamento da correção fraterna Jesus não está propondo algo ideal, mas uma prática pedagógica real no interior da comunidade cristã, que não se vê como perfeita, mas que entende o pecado como um comportamento que atinge a toda comunidade. Pois, ainda que o pecado seja individual, tem uma dimensão comunitária. Por isso, também o perdão tem a ver com a Igreja-comunidade. Na comunidade nos sustentamos e nos corrigimos uns aos outros. A correção se dá através de três níveis ou intervenções: A primeira intervenção é a admoestação ou advertência pessoal, discreta e confidencial: “Se teu irmão pecar, vai corrigi-lo a sós. Se ele te ouvir ganhaste o teu irmão.” (Mt 18,15) Jesus ensina que ninguém pode descomprometer-se de seu próximo. Ele considera que todos somos irmãos e irmãs e ninguém pode pensar somente em si próprio. Por isso quando alguém age mal, temos a obrigação de corrigi-lo, de adverti-lo de seu erro. E isso feito por amor e com amor. Buscando o bem do outro e não nossa própria satisfação. A correção há de ser fraterna, de irmão a irmão, a sós e com prudência; no mínimo com o desejo sincero de ajudar a levantar quem caiu. Porque todos somos pecadores. Sem dúvida, se o pecador se arrepende, terá salvado a um irmão para a vida eterna.
A segunda interferência se dá na presença de alguns membros da comunidade, para dar maior peso à advertência: “Toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda questão seja decidida pela palavra de duas ou três testemunhas.” (Mt 18,16) O conselho de Jesus se refere à norma dada pelo Deuteronômio: “Uma única testemunha não é suficiente contra alguém, em qualquer caso de iniquidade ou de pecado que haja cometido. A causa será estabelecida pelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas”. (Dt 19,15) Três pessoas vêem melhor que uma só. Trata-se de pecados graves que afetam a comunhão, a comunidade e para isso se deve seguir a antiga práxis judaica da admoestação com testemunhas.
A terceira e última intervenção se dá com toda a comunidade: “Se nem mesmo à Igreja der ouvido, trata-o como o gentio ou o publicano.” (Mt 18,17) A última instância é toda a Igreja local. A intervenção de toda a comunidade é para recordar a atitude de fechamento do irmão, de sua auto-exclusão do seio da própria comunidade. “Na verdade o que Jesus queria era proteger o amor fraterno, não deixar que sua Igreja se tornasse uma seita, isto é, um grupo fechado sobre si mesmo, que excluísse do convívio os ‘pequeninos’, os ‘fracos’, os que errassem. Isso seria fomentar divisões, matar a comunidade... É grande o perigo de a comunidade querer ser um canteiro de observantes, puros, piedosos, com exclusão dos outros, assim eram os fariseus.” (Neotti, 2001.)
Como que para dizer que a verdadeira correção fraterna deve-se dar em clima de oração, Jesus acrescenta um ensinamento sobre a oração: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou no meio deles.” (Mt 18,20) A presença de Jesus na comunidade faz dela o lugar do perdão dos pecados e a mesma presença faz que a oração eclesial seja ouvida por Deus, conferindo assim um valor especial à oração comunitária. “O perdão tem gosto de oração. A oração comunitária é expressão de unidade e de amor fraterno, ou seja, de pessoas pacificadas entre si e com Deus. Na oração feita em clima de perdão, e no perdão dado e recebido em clima de oração, Deus se faz presente. O que nos vem lembrar que o perdão dado e recebido não pode basear-se apenas em critérios humanos.” (Ibid. Neotti.)
A oração comum enriquece sobremaneira nossa oração pessoal. Isso não exclui a necessidade de que tenhamos experiências de perdão e de oração pessoais, mas há mais sentido quando tudo isso se integra na comunidade eclesial, na vida comunitária como lugar do discipulado, do perdão e da oração.
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
Vários autores. Comentários à Bíblia Litúrgica, Portugal, Gráfica de Coimbra 2
Cencini, Amedeo. Integração Comunitária do Bem e do Mal. São Paulo, Paulinas, 2003.
Neotti, Frei Clarêncio. Ministério da Palavra, comentários aos Evangelhos dominicais e festivos. Petropolis, Vozes, 2001.
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