domingo, agosto 14, 2011

Uma mulher grande na fé

Padre José Assis Pereira
A salvação é para todos. A universalidade da salvação aparece de modo especial neste 20º domingo do tempo comum. A cada encontro nosso aos domingos a Palavra de Deus vai agindo no mais fundo de nós mesmos. Como a terra mesma, se vai fazendo mais frutífera e mais rica, quando se trabalha.

O texto do livro do Profeta Isaías (cf. Is 56, 1.5-6) pertence ao chamado “terceiro Isaías”, é já um profeta do pós-exílio (530 aC). O profeta expõe a situação dos judeus deportados que depois de ter convivido com povos estrangeiros no exílio voltam à pátria e encontram outros povos habitando sua terra. O povo reagia contra os estrangeiros e não os admitia no seio da comunidade. O profeta sabe que a vontade de Deus é fazer de todos os povos e nações um só povo, um povo de sua propriedade. Nem pelo fato de ser estrangeiros estão afastados de Deus, nem pelo simples fato de ser judeus são os mais abençoados por Deus. Diante de Deus ninguém é estrangeiro, igualmente ninguém é de Deus pelo simples fato de ser judeu. Deus abençoa a quem “observa o direito e pratica a justiça”. Por isso o profeta através de um oráculo, Deus manifesta sua vontade de reunir a todos em uma mesma salvação: “Quanto aos estrangeiros ligados ao Senhor para servi-lo, para amar o nome do Senhor, e tornar-se servos seus... trá-los-ei ao meu monte santo e os cobrirei de alegria na minha casa de oração... Com efeito minha casa será chamada casa de oração para todos os povos”. Não importa a raça, o sangue, a única coisa que se exige é observar as prescrições na aliança. Todos são chamados a participar no culto do novo templo reconstruído, a casa de oração de todos. Isso deve ser também para nós o templo, nossos templos, casas de oração onde podemos nos alegrar.

O tema da universalidade da salvação se apresenta também na Carta aos Romanos (cf. Rm 11, 13-15. 29-32). A salvação é para todos: judeus e pagãos e o apóstolo Paulo se preocupa com a salvação de seus irmãos de sangue. São Paulo é considerado o “apóstolo dos gentios” e assim como ele mesmo se define: “Enquanto apóstolo das nações, eu honro o meu ministério, na esperança de provocar o ciúme dos de meu sangue e de salvar alguns deles.” Às nações, aos gentios ele dirige sua palavra e os serve, na esperança de que a sua conversão seja estímulo para os judeus, “os de meu sangue”; que a Igreja dos gentios seja um despertar para quantos vivem apegados às velhas tradições e estão como que escravos da Lei. A teologia de Paulo repete esta ideia muitas vezes: todos éramos “desobedientes”, pecadores e Cristo veio pagar nosso resgate, o resgate de todos, judeus e gentios. Todos formamos em Cristo um só corpo, do que devemos sentir-nos todos membros responsáveis. Todos somos corresponsáveis uns pelos outros. Um cristão deve sentir-se irmão de todos, sem distinção de raça, língua, gênero: homem ou mulher; condição social: escravo e livre. Porque todos somos filhos de um mesmo Deus, todos somos irmãos em Cristo e por Cristo.

No evangelho (cf. Mt 15, 21-28), vemos Jesus mesmo realizar um milagre em favor de uma mulher pagã, mostrando aos discípulos que a salvação tem um caráter universal. O relato é um breve diálogo de alto nível dramático e narrativo entre Jesus e uma mulher Cananéia; mãe aflita, que pede a cura para uma filha e põe em evidência alguns elementos importantes: Primeiro a postura de Jesus em relação às mulheres. “Em todo o ensinamento de Jesus, como também no seu comportamento, não se encontra nada que denote a discriminação, própria do seu tempo, da mulher. Ao contrário, as suas palavras e as suas obras exprimem sempre o respeito e a honra devidos à mulher... o modo de falar às mulheres e sobre elas, assim como o modo de tratá-las, constitui uma clara ‘novidade’ em relação aos costumes dominantes do tempo... Cristo é aquele que ‘sabe o que há no homem’ (cf. Jo 2, 25), no homem e na mulher. Conhece a dignidade do homem, o seu valor aos olhos de Deus. Ele mesmo, Cristo, é a confirmação definitiva deste valor... O comportamento de Jesus a respeito das mulheres, que encontra ao longo do caminho do seu serviço messiânico, é o reflexo do desígnio eterno de Deus, o qual, criando cada uma delas, as escolhe e ama em Cristo (cf. Ef 1, 1-5).” (João Paulo II, 1988)

Com este relato da mulher Cananéia, Mateus quer abrir as portas da comunidade cristã e as mentes dos discípulos para acolher os pagãos, os que não provêm da fé judaica. Além de expor este grande dilema vivido pela Igreja no final do primeiro século ele nos oferece uma visão muito singular da abertura do evangelho aos “gentios”, considerados impuros e malditos com os quais os judeus daquele tempo tinham uma postura de distanciamento e até de enfrentamento, do ponto de vista religioso. Por trás da imagem dos “cães”, esconde-se este conflito entre o mundo judeu e o mundo pagão. Mas, também para eles há uma esperança, confessa a mulher Cananéia.

Uma vez mais, para entender a intenção mais profunda desta perícope evangélica, devemos conhecer o contexto do texto. Jesus acaba de ter uma dura discussão com escribas e fariseus (cf. Mt 15, 1-9) “que vieram de Jerusalém e disseram: Por que os teus discípulos violam a tradição dos antigos? Pois não lavam as mãos quando comem.” Jesus lhes responde que são eles mesmos, os escribas e fariseus, os que têm anulado a Palavra de Deus em nome de suas tradições. Para terminar a contenda diz a seus discípulos: “Eles são cegos conduzindo cegos.” (Mt 15,14) Depois disto vem o episódio da mulher Cananéia.

“A cena localiza Jesus em um mundo de barreiras étnicas, culturais, econômicas, políticas e religiosas. Jesus não está isento destes preconceitos, mas o reinado de Deus, responsável pela integridade e abundância, os destrói... Esta mulher pagã está geograficamente marginal na cosmovisão de Israel. Como Cananéia, membro de um povo amaldiçoado, destinado a ser dominado como escravos (Gn 9,25), ela pertence a um povo desapropriado pela ocupação e posse da terra de Israel... Mas embora submissa, ela desafia esta ideologia excludente. A sua demanda por inclusão constitui a sua fé, o meio pelo qual ela encontra a bênção do Deus de Israel. Ela é anônima, não é apresentada em relação a um homem (marido, irmão, pai). É ela uma viúva, uma órfã, nunca casada, ou alienada de sua família por alguma razão? Como Cananéia, ela é pagã... Não há nenhuma indicação de como ela ouviu falar de Jesus. Ela é a primeira mulher a falar no evangelho a sua petição não é para ela, mas para Jesus libertar a sua filha das forças que agora a possuem, “minha filha é atormentada por um demônio”. Ela pede que pelo exorcismo de Jesus, o reinado de Deus se manifeste.” (Carter, 2002.)

O relato evangélico está construído com uma intenção teológica. A urgência da situação é eloquente por si mesma. Estando a sua filha numa situação humanamente crítica, “endemoninhada”, o seu coração de mãe se abre a toda possibilidade procedente de Jesus. Ante a súplica da mulher Cananéia, a princípio Jesus está como que representando um papel, suas palavras duras e até indelicadas não são suas, mas de um judeu ortodoxo: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel… Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-los aos cachorrinhos.” (Mt 15, 24.26) É a teologia oficial judaica daquele tempo, é o que responderia o mais ortodoxo dos fariseus. A mulher “Cananéia”, não é filha de Israel e não tem direito de pedir o que pede e dizer o que diz. No entanto ela não se arreda, porque sabe muito bem que ante um profeta de Deus as tradições judaicas não têm nunca a última palavra: “Isso é verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos!” (Mt 15,27)

Pronto, Jesus havia conseguido o que queria: deixar claro a seus discípulos que a fé deve romper todas as barreiras que haviam imposto os escribas e fariseus. Aquela mulher que a princípio se sentia como um cachorrinho aos pés do seu dono, Jesus quis elevar da sua categoria de mulher pagã e mãe: “Mulher, grande é tua fé! Seja feito como queres!” (Mt 15,28) Ela é grande por sua fé capaz de mover montanhas e isso, precisamente, ele não via acontecer na religião judaica, nem na sua pátria e nem entre os seus discípulos. A lição está dada. O demônio da incompreensão, do preconceito, da incomunicação, da inumanidade entre pessoas, povos e religiões foi expulso. O reino da salvação chega para todos. “Sua persistência em face das distinções de Jesus, seu desafio às barreiras étnicas, de gênero, religiosas, políticas e econômicas, sua confiança no poder dele e seu reconhecimento da autoridade dele sobre os demais correspondem sua fé, em contraste com a pouca fé dos discípulos. Esta mulher menosprezada chama Jesus de Senhor, o enfrenta em um diálogo, o surpreende com sua fé. O milagre é efetivado pelas palavras de Jesus: “seja feito” e “sua filha ficou curada", imediatamente... Executando o milagre Jesus supera barreiras étnicas, culturais, políticas, de gênero e religiosas.” (Carter, 2002.)

Jesus quer dizer com este milagre que ele, sendo judeu, não lhe era permitido oficialmente nem se aproximar dos pagãos ou fazer o bem àquela mulher pagã. Mas ele abandona a “oficialidade” da ortodoxia judaica, pois ele não estava de acordo com esta mentalidade e ensina que esta mulher se comporta melhor que muitos judeus, é mais que uma filha de Israel é capaz de mover o mundo para tocar o coração de Deus por querer “desdemonizar”, libertar a sua filha. Jesus ante o rosto sofrido daquela mulher só pode fazer um coisa, encarnar-se, fazer-se compaixão com a mulher e sua dor, com uma mãe e sua filha. Assim, Jesus mostra quem ele é e o que veio fazer: chamar a todos, salvar a todos, “desdemonizar” a todos, libertá-los. Jesus sabe como experiência pessoal que na realidade “ele não veio chamar os justos mais sim os pecadores.” (Mc cf. 2, 17)

Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
João Paulo II, Carta Apostólica Mulieres Dignitatem, sobre a dignidade e a vocação da mulher. São Paulo, Paulinas, 1988.
Carter, Warren. O Evangelho de São Mateus, comentário sociopolítico e religioso a partir das margens. São Paulo, Paulus, 2002.

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