sábado, julho 30, 2011

O pão que sacia a fome

Padre José Assis Pereira Soares
Pároco da Paróquia de Fátima

Na celebração Eucarística o Senhor nos reúne e nos convida a atentos escutá-lo, para que sua Palavra e seu Corpo sejam verdadeiro alimento para nossas vidas.
O profeta Isaías (cf. Is 55,1-3) faz um convite para um banquete: “Todos que tendes sede, vinde à àgua. Vós, os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; comprai, sem dinheiro e sem pagar, vinho e leite… Escutai-me e vinde a mim, ouvi-me e vivereis.” “O profeta convida, não apenas os judeus e gentios, mas todos quantos estejam com fome ou sede, para o grande banquete escatológico dos tempos messiânicos. Basta ‘ter sede’, necessitar de Deus. É a teologia profunda dos ‘Anawin’ ou Pobres de Javé… É que as necessidades mais peremptórias do homem, como o comer e o beber, são as que melhor podem penetrar na compreensão humana, para suscitar nele o desejo de algo imperecível que lhe possa dar a verdadeira felicidade… A única condição evocada com insistência imperativa é ‘escutar’, dar ouvidos, pois a fonte da vida está na palavra de Deus. Os que tiverem ouvidos para ouvir, viverão.” (Bíblia Litúrgica) Como sabemos, banquete na linguagem bíblica é uma imagem do amor de Deus. Quando se fala do banquete escatológico, se fala do amor de Deus que se manifestará no final dos tempos.
Na verdade o Senhor ama seu povo. A Carta aos Romanos traz um verdadeiro hino a esse amor gratuito de Deus e de Cristo. (cf. Rm 8, 35.37-39) Sempre me impressionou esta verdadeira pérola do Novo Testamento. “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a perseguição, a fome, a nudez, os perigos, a espada?... Mas em tudo isto somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou.” A lista de sofrimentos postos antes do final glorioso, são expressão de calamidades verdadeiras e existenciais que vemos cada dia e que sofremos e sofrerá a humanidade. Mas este é um hino contra toda calamidade, porque é um hino do amor que Deus tem por nós, revelado em Cristo. “Nada, nem ninguém poderá nos separar do amor de Deus.” Assim, o apóstolo Paulo quer levar aos cristãos essa certeza da fé: Deus estará conosco, nunca contra nós.
No evangelho, São Mateus nos fala que Jesus vem revelar que o seu Deus é amor e vendo as necessidades do seu povo o alimenta como fez com Moisés e o povo Hebreu no longo caminho para a terra prometida. O evangelista nos conta no final do capítulo 13 e início do 14 de seu evangelho que quando Jesus acabou de contar suas parábolas, dirigiu-se para a Sinagoga de Nazaré para ensinar; no entanto, alí foi rejeitado e não fez muitos milagres. Ao saber da morte de João Batista Jesus se retira para um lugar afastado, mas quando a multidão soube, foi ao seu encontro e ele “ao ver a grande multidão, tomado de compaixão, curou seus doentes” (Mt 14,14) e aí vem o relato da primeira multiplicação dos pães. (cf. Mt 14, 13-21)
A tradição do milagre da “multiplicação dos pães” está bem arraigada em seis textos, nos quatro evangelhos (cf. Mt 14,13-21; 15,32-39; Mc 6,32-44; 8,1-10, Lc 9,10b-17; Jo 6,1-15); Isto indica a importância que o texto teve e tem para a comunidade cristã. O episódio está carregado de simbolismo. Lendo-o atentamente, vemos que em nenhum momento se fala de “multiplicação dos pães”, mas sim, de partilha de pães. Claro que do mesmo relato se deduz que os pães deveriam multiplicar-se, já que com cinco pães e dois peixes não comem mais de cinco mil pessoas e ainda sobram doze cestos cheios de pães.
A multiplicação dos pães é introduzida por um diálogo dos discípulos com Jesus. Eles sugerem que Jesus despeça a multidão para que possa ir comprar alimentos pois a hora está avançada e o lugar é deserto (cf. Mt 14, 15-19). Se Jesus despedisse as pessoas, se livraria da responsabilidade de ter que dar-lhes de comer. No entanto, Jesus pede aos seus discípulos: “Dá-lhes vós mesmos de comer.” (Mt 14, 16)
Os gestos de Jesus dão ao relato um significado profundamente eucarístico: “Jesus tomou os cinco pães e dois peixes, elevou os olhos ao céu e pronunciou a bênção. Em seguida, partindo os pães, deu-os aos discípulos, e os discípulos às multidões.” (Mt 14,18-19) Os apóstolos, fazendo as pessoas sentarem-se na grama, repartindo o pão e recolhendo as sobras, fazem referência à Igreja, dispensadora do pão da Palavra, do pão da Eucaristia e do pão dos pobres. Jesus une a palavra e o pão. Neste milagre se vêm confirmadas as tarefas pastorais da Igreja: pregar a palavra, repartir o pão eucarístico e servir o pão da caridade aos pobres. A Igreja se quer ser fiel a seu Mestre, há de unir também à Palavra o pão repartido da caridade. Os pastores da Igreja devem fazer com que chegue a todos, o pão da Palavra e da Eucaristia e o pão que sacia a fome mais existencial das pessoas. Se meu irmão diz: “tenho fome”; é um fato físico para ele e moral para mim. Basta que nos disponhamos a partilhar nossos cinco pães e dois peixes. Basta que nos abramos completamente a Jesus e lhe demos tudo o que temos, seja pouco ou muito.
A compaixão que Jesus sente é que lhe faz tomar a decisão irresistível de que o pouco que ele e os seus discípulos têm deve entregar às pessoas. Esta deve ser a chave interpretativa do texto, mas que infelizmente viciou-se em explicar e dar sentido ao aspecto “taumatúrgico” e ao poder extraordinário de Jesus. Ele quer compartilhar o pouco que tem ele e os seus, e isto é o que faz possivel o “milagre” de que tenha para todos e ainda sobre. Este “milagre” deveria ensinar-nos que também hoje isto é possivel quando há compaixão, quando não se é indiferente ante a dor humana. 
Jesus vai ensinar que é preciso transformar uma dinâmica econômica e materialista em um projeto de gratuidade e de partilha. E Jesus com cinco pães e dois peixes, desvinculados do afã egoísta e materialista de seus possuidores (“meus” pães e “meus” peixes), saciou a fome de todos: “Todos comeram e ficaram saciados, e ainda recolheram doze cestos cheios de pedaços que sobraram.” (Mt 14,20)
Sem nos meter agora em problemas de exegese bíblica, o fato de que o texto evangélico nos fale de partihar e não multiplicar nos dá motivo para refletir sobre a fome que padecem hoje milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil apesar dos projetos bem sucedidos, ainda existem por volta de 16 milhões de pessoas que passam fome. Mas, notícias recentes nos situam na terrível geografia da fome no mundo. O alto comissário da ONU para os refugiados, o português Antonio Guedes considerou que a seca, os conflitos armados e a fome no chamado “Chifre da África” (Somália, Etiópia, Quênia e Uganda), afeta 10 milhões de pessoas e representa um drama de proporções desconhecidas. Lamentando a fraca capacidade de resposta da comunidade internacional disse: “Estamos angustiados porque aquilo que fazemos não é suficiente quando vemos a dimensão da tragédia.” No campo de refugiados de Dollo Ado (Etiópia), a taxa de mortalidade é de 7,4 mortos diários por cada 100.000 pessoas (uma emergência é declarada pela ONU quando se chega a uma morte por cada 10.000).
O escândalo da fome no mundo não é a falta de pão, mas de reparti-lo melhor. Em recente discurso aos participantes da XVII Conferência da ONU para a Alimentação  e a Agricultura (FAO) o papa Bento XVI destacou a dramaticidade desta situação e a exigência de uma profunda conversão pessoal e mudanças das estruturas políticas e econômicas para enfrentar o problema: “O momento de crise que investe atualmente todos os aspectos da realidade econômica e social exige, de fato, todos os esforços para colaborar para a eliminação da pobreza, primeiro passo para libertar da fome milhões de homens, mulheres e crianças que não têm o pão de cada dia. Uma reflexão completa, no entanto, impõe que se encontrem as causas de tal situação sem se limitar aos níveis de produção, à demanda crescente de alimentos ou à instabilidade dos preços: fatores que, embora sejam importantes, correm o risco de levar a uma leitura do drama da fome em chave exclusivamente técnica. A pobreza, o subdesenvolvimento e, portanto, a fome são com frequência resultado de atitudes egoístas que, partindo do coração do homem, se manifestam no seu agir social, nas mudanças econômicas, nas condições de mercado, na falta de acesso ao alimento e traduzem-se na negação do direito primário de cada pessoa a nutrir-se e, portanto, a ser libertada da fome. Como podemos ignorar o fato de que também o alimento se tornou objeto de especulações e está ligado aos andamentos de um mercado financeiro que, privado de regras certas e pobre de princípios morais, parece apegado ao único objetivo do lucro? A alimentação é uma condição que diz respeito ao direito fundamental à vida. Garanti-la significa também agir diretamente e sem demora sobre aqueles fatores que, no setor agrícola, pesam de modo negativo sobre a capacidade de trabalho, mecanismos de distribuição e mercado internacional. E isso apesar da presença de uma produção alimentar global que, segundo a FAO e especialistas influentes, é capaz de alimentar a população mundial.”
Dizem os entendidos no assunto, que hoje, no mundo se produz  pão suficiente  para alimentar a todos os que o necessitam; o problema não é que não haja pão, senão que o pão que existe está mal repartido. A marca da fome é consequência de nosso pecado, pois Deus pôs os bens do mundo a serviço de todos, não só de uns poucos.
Basta pensar em um dado repetido hoje centenas de vezes: mais da metade do primeiro mundo tem como principal problema o excesso de peso e a obesidade, enquanto a maior parte do terceiro e quarto mundo têm como principal problema encontrar um pedaço de pão para comer. A consequência é fácil de deduzir: se os que têm de mais dessem o que se lhes sobra aos que têm menos, se resolveria o problema. Desgraçadamente, o problema não é novo; nem o problema, nem a possível solução. “Sabe-se com que insistência os Padres da Igreja determinaram qual deve ser a atitude daqueles que possuem em relação aos que estão em necessidade: “não dás da tua fortuna, assim afirma santo Ambrósio, ao seres generoso para com o pobre tu dás daquilo que lhe pretence. Porque aquilo que te atribuis a ti, foi dado em comum para o uso de todos. A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos”… Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário.” (Paulo VI , Populorum Progressio n.23) 
Com a bimilenar tradição do ensinamento dos padres da Igreja podemos dizer que o pão que sobra a alguns é o pão que outros necessitam. O pão que sobra dos ricos pertence aos pobres, portanto se os ricos não dão aos pobres o pão que lhes sobra estão comendo um pão injusto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário