segunda-feira, junho 13, 2011

Um Pentecostes permanente

José Assis Pereira Soares
Pároco da Paróquia de Fátima
Campina Grande/PB

Com a festa de Pentecostes fechamos o tempo Pascal. Foram cinquenta dias desde o Domingo da Ressurreição até hoje. Mas tudo é um só acontecimento. Celebramos uma única festa, tão importante que a fazemos durar no tempo. Neste domingo o “Círio Pascal” é solenemente apagado, para simbolizar o fim da presença visível do Senhor e o início da ação invisível do Espírito.
A Festa de Pentecostes, coroamento do tempo pascal, é celebrada com uma missa da vigília, que antigamente era dia de Batismo, além da Páscoa; vigília preciosa por seus conteúdos litúrgicos e pela liturgia da Palavra. Ainda que seja pouco celebrada, não quer dizer que seja menos interessante. Na missa do dia aparece após a segunda leitura, a “sequência” de Pentecostes, “Veni Sancte Spiritus” (Vinde, Espírito Santo), uma espécie de Cântico dos Cânticos à obra do Espírito Santo; texto maravilhoso, criado na Idade Média, que é sem dúvida uma das composições litúrgicas populares mais belas que se conhece. A “sequência”, segundo o dicionário de Liturgia é um “canto em poesia ou prosa ritmada que segue o canto da leitura precedente ao Evangelho, em alguma solenidade. O nome deriva do conjunto das neumas (sinais da antiga notação musical medieval) que vocalizavam com longa sequência de notas a última vogal do Aleluia. Para facilitar esta vocalização de tão poucas palavras, formaram uma composição autônoma que se tornou a sequência. Recordemos: “Victimae paschali laudes” e o conhecidíssimo “Stabat mater”.” (Sartore, 1992.) 
O prefácio da missa do dia nos lembra que “para levar à plenitude os mistérios pascais, derramaste ‘hoje’, o Espírito Santo prometido”. (cf. Missal Romano) Portanto, se completou o mistério pascal em Jerusalém com o nascimento da Igreja universal. Como nos diz o Concílio Vaticano II: «Consumada a obra que o Pai confiara ao Filho para que ele a realizasse na terra (cf. Jo 17,4), no dia de Pentecostes foi enviado o Espírito Santo para santificar continuamente a Igreja e assim dar aos crentes acesso ao Pai, por Cristo, num só Espírito (cf. Ef 2,18)... O espírito habita na Igreja e nos corações dos fieis, como num templo (cf. 1Cor 3,16; 6,19). Leva a Igreja ao conhecimento da verdade total (Jo 16,13), unifica-a na comunhão e no ministério, dota-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos, com os quais a dirige e embeleza (cf. Ef 4,11-12; 1Cor 12,4; Gl 5,22). Com a força do Evangelho, faz ainda rejuvenescer a Igreja, renova-a continuamente e eleva-a à união consumada com o seu esposo. Assim a Igreja universal aparece como o “povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo.”» (LG n. 4)
Pentecostes era uma festa judaica de colheita. «É a festa das primícias por excelência, e a dos ázimos (da páscoa) não é outra coisa senão sua preparação, enquadrando uma e outra o tempo da ceifa. A ligação entre Páscoa e Pentecostes encontra-se na própria raiz etimológica desta última: pentecostes significa quinquagésimo (subentende-se dia) em relação à Páscoa, que seria o primeiro (dia). A observação vale também para o nome hebraico “shavu’ot”, que quer dizer “semanas”: a festa que se celebra depois de sete semanas a partir do dia de “pesah” (Páscoa)... Esta ligação entre as duas festas é importante porque ajuda a compreender como elas obedecem uma mesma lógica teológica: o reconhecimento de Deus como benfeitor da terra e como senhor da história... Até a destruição do Templo (70 d.C.) era esta a dimensão que prevalecia, e era celebrada com um ritual rico e impressionante... Quando o templo de Jerusalém foi destruído, a festa de Pentecostes perdeu este caráter agrícola e passou a acentuar o histórico, isto é, a festa do dom da Torá, principalmente para os rabinos e estudiosos do livro sagrado.» (Di Sante, 2004.)
A grandeza deste Domingo de Pentecostes, para nós cristãos é ressaltada pela Liturgia de hoje como a manifestação extraordinária de uma Aliança Nova, que já não está em uma lei escrita, mas na vida nova, que lhe chega à Igreja nascente pelo sopro do Espírito do Ressuscitado. Assim foi nos primeiros tempos entre os primeiros discípulos e discípulas de Jesus. Depois de um tempo pascal prolongado, se viram envolvidos em uma força irresistível, maravilhosa, que os levou com novas asas a proclamar a mensagem de salvação e a afrontar todas as dificuldades que isso significa dentro do mundo judeu e pagão, revelando assim, a universalidade da mensagem evangélica.
Na Liturgia da Palavra o relato dos Atos dos Apóstolos (cf. At 2,1-11) é de uma beleza e plasticidade singulares. São Lucas se serve do Antigo Testamento para narrar o Pentecostes em sua visão teológica. Ele coloca a vinda do Espírito Santo cinquenta dias após a Páscoa para fazê-la coincidir com o Pentecostes judaico: “Tendo-se completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído como o agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas...” (At 2,1-4) O vento impetuoso, o fogo, a capacidade para fazerem-se entender em diversas línguas e, inclusive, o comentário assombrado de quem os escutava: “não são, acaso, galileus todos esses que falam? Como é, pois, que os ouvimos falar, cada um de nós, no próprio idioma em que nascemos?” (At 2,7-8). Falam desse maravilhoso prodígio que está só começando e continuará vivo ao longo da história bimilenar da Igreja. O Espírito Santo sustenta nosso próprio esforço de santificação pessoal e mantém a atividade de evangelização da Igreja. A partir do ponto de vista Lucano deduzimos que toda a iniciativa missionária apostólica na difusão do Evangelho é ação do Espírito Santo. É o Espírito que dirige a Igreja e sugere as decisões. O Espírito é a personificação da ação divina e a manifestação iluminativa de Deus.
São Paulo (cf. 1Cor 12,3-7.12-13) vai definir esta ação do Espírito Santo de maneira magistral: “Há diversidade de dons, mas o Senhor é o mesmo, diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos.” (1Cor 12, 4-7) Para o Apóstolo o Espírito é soberano para distribuir os carismas e dons para o bem da Igreja. Acolher esta diversidade de dons é acolher a ação providente do Espírito. Na primeira geração de cristãos como na atual abundam os dons. Todos os carismas com suas distintas direção e missão, procedem do mesmo Espírito. Mas, Paulo nos adverte severamente, apoiado na dolorosa experiência da comunidade de Corinto, à qual queria tanto bem, que ninguém se atribua carismas que não tenha recebido, que ninguém se torne vaidoso do seu carisma como se fosse concedido por méritos próprios. E ainda, que ninguém os utilize para criar divisão, pois isso estava fora do projeto do Espírito quando concede os carismas. Estes comportam a diversidade para conseguir a comunhão e a unidade: “Fomos todos batizados num só Espírito para ser um só corpo...” (1Cor 12,13)
O Evangelho (cf. Jo 20,19-23) nos apresenta a visão de João do Pentecostes. Para ele, diferente do que pensa Lucas, Pentecostes acontece na primeira aparição do Ressuscitado na tarde do primeiro dia da semana, o mesmo dia da Ressurreição. A partir daí a comunicação de Jesus Ressuscitado com os discípulos se realizou por meio do Espírito. O evento propriamente dito é narrado brevemente nos vv. 19-20. Os discípulos achavam-se reunidos numa casa, a portas fechadas, cheios de medo. Em seguida, o Ressuscitado se faz presente e deseja-lhes a paz, mostra-lhes suas feridas como sinal de sua presença real e a reação dos discípulos é de grande alegria por verem o Senhor. Nos vv. 21-22 Jesus insufla sobre eles o Espírito e os envia para continuar a sua missão. Cumprindo o que havia prometido o Ressuscitado “sopra” sobre os discípulos e comunica-lhes o “Espírito Santo”. Intimamente unido ao dom do Espírito está o poder de “perdoar” ou “reter” os pecados. Aqueles homens familiarizados com o linguajar do Antigo Testamento conheciam bem a força criadora do Espírito de Deus, na linguagem hebraica, o “ruah”. O “sopro” de Jesus sobre os discípulos, como Deus Pai soprando sobre o corpo inerte de Adão dando-lhe vida, vivifica-os como membros do Corpo Místico de Cristo, sua Igreja. Nasce aí a comunidade eclesial. O medo que era como um freio que bloqueava a missão de testemunhar o Cristo Ressuscitado transforma-se, com a presença do Ressuscitado e pela força do seu Espírito, em paz, alegria e missão. A verdade é que o Espírito do Senhor esteve presente em toda a Páscoa e foi o autêntico artífice da Igreja primitiva desde os primeiros dias em que Jesus já não estava com eles. Pentecostes é a representação decisiva e programática de como a Igreja, nasce da Páscoa-Pentecostes e se abre à universalidade da missão.
Às vezes temos a impressão que certos cristãos se surpreendem e se maravilham vendo a ação do Espírito fora da Igreja, e têm perdido toda a capacidade de contemplação e admiração para descobrir a imensa e magnífica ação do Espírito no hoje da Igreja. Não quero aqui me referir tão somente às manifestações do maravilhoso na renovação carismática, a avalanche de fenômenos às vezes estranhos, depois de um tempo em que talvez a Igreja tenha se esquecido do Espírito e se embrenhado no ativismo de uma práxis mais social. É necessário percebermos que o Espírito Santo agiu e age com e na Igreja. Vive-se na Igreja um Pentecostes permanente em que o Espírito atua, penetra, rege e forma, pela diversidade de carismas, dons, serviços e funções toda a comunidade eclesial.
É o Espírito quem rejuvenesce a Igreja com seus dons, corrige-a, renova-a e a santifica. É o Espírito que nos ilumina e nos abre o entendimento para compreender a profundidade da palavra de Deus. É o Espírito que convoca, impulsiona, dá força a Igreja, aos seus membros na ação pastoral. Os concílios, conclaves, assembleias episcopais são obra do Espírito que atua e unifica a Igreja. Sem o Espírito, falta força interior que nos mova a sair e anunciar com valentia aquilo que dá sentido a nossa fé e a nossa vida; falta liberdade, audácia, fraquejam nossas convicções mais profundas. Sem o Espírito andamos divididos, nos falta a unidade vamos cada um por seu lado, vivemos a fé como algo individual e privado, custa reconhecermo-nos irmãos uns dos outros, membros da mesma comunidade cristã, da mesma Igreja. Sem o Espírito ressaltamos mais o que nos divide e separa do que o que nos une; aparecem as divisões, as classificações e os rótulos. Quando não está o Espírito aparece o pecado da divisão, e quando nos descobrimos assim necessitamos reconciliar-nos entre nós e com Deus, necessitamos recuperar o Espírito.
É sinal deste Pentecostes permanente a riqueza de carismas na Igreja: Há cristãos chamados ao sacerdócio, à vida religiosa consagrada ou nas “novas comunidades” de vida e missão; outros são chamados ao Matrimônio cristão, a constituírem verdadeiras famílias cristãs; há mulheres e homens cristãos, dedicados à missão, à construção de Igrejas, à pregação, à teologia, à educação religiosa de crianças e jovens, à catequese, à formação, à assistência aos pobres, doentes e idosos abandonados; há cristãos comprometidos, na promoção e libertação da pessoa humana; há outros comprometidos com a construção do diálogo interreligioso, da paz e da justiça, há cristãos comprometidos com a política e com a economia mais justa e solidária e há também, quem apenas pode contribuir com o seu testemunho pessoal da vida cotidiana, nos ambientes de trabalho e na sociedade o que já é muitíssimo. Em todas essas pessoas se manifesta o mesmo e único Espírito e assim se renova entre nós os prodígios de um Pentecostes permanente na Igreja.  Cada um contribuindo com seus dons para a unidade da comunidade eclesial, Corpo de Cristo. O Espírito Santo é a "alma" deste Corpo, desta Igreja e é sua força impulsionadora e criativa no mundo.


Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja. São Paulo, Paulus, 2004.
Sartore, Domenico. Dicionário de Liturgia. São Paulo, Paulinas, 1992.
Di Sante, Carmine./Triacca, Achille M. Liturgia Judaica, fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo, Paulus, 2004.

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