domingo, junho 05, 2011

Um final e um príncipio

Padre José Assis Pereira Soares
Pároco da Paróquia de Fátima
O sétimo domingo da Páscoa acolhe, desde muito tempo a solenidade litúrgica da ascensão do Senhor. É óbvio que em alguns lugares esta festa litúrgica continua sendo situada em um dia da sétima semana pascal, como nos indica a Liturgia das Horas. Porém, parece oportuna sua posição na assembleia dominical pois, sem dúvida, engrandece o Domingo, dia do Senhor, festa primordial dos cristãos e universaliza a celebração. O mesmo também poderia acontecer, na minha modesta opinião, com a solenidade do Corpo e Sangue do Senhor, celebrando-a no Domingo, dia eucarístico por excelência; sobretudo em novos tempos distantes do modelo de cristandade.
Contamos nos textos de hoje da Liturgia da Palavra com um príncípio e um final. Leem-se os primeiros versículos do livro dos Atos dos Apóstolos (cf. At 1, 1-11) e os últimos do Evangelho segundo Mateus (cf. Mt 28, 16-20). Nos Atos Lucas vai narrar de maneira plástica a súbida de Jesus aos céus e no texto de Mateus se lê a impressionante despedida de Jesus. 
É São Lucas o único autor em todo o Novo Testamento, que faz um relato desse “mistério” cristológico da ascensão de Jesus ao céu, tanto no seu Evangelho (cf. Lc 24, 46-53) como nos Atos dos Apóstolos (cf. At 1,1-11). A ascensão não implica um grau a mais ou um mistério distinto da Páscoa. O próprio Catecismo da Igreja Católica assim fala: “O corpo de Cristo foi glorificado desde o instante de sua Ressurreição, como provam as propriedades novas e sobrenaturais de que desfruta a partir de agora seu corpo em caráter permanente. Mas, durante os quarenta dias em que vai comer e beber famiiarmente com seus discípulos e instrui-los sobre o Reino, sua glória permanece ainda velada sob os traços de uma humanidade comum. A última aparição de Jesus termina com a entrada irreversível de sua humanidade na glória divina, simbolizada pela nuvem e pelo céu, onde já está desde agora sentado à direita de Deus. (CIC, n. 659) A ascensão é o mesmo que a Ressurreição, se esta se concebe como a “exaltação” de Jesus “à direita de Deus”.
“Está sentado à direita do Pai.” «Que significa isso? Não se alude, com isso, a um espaço cósmico distante. Onde Deus teria, por assim dizer, erigido o seu trono e, sobre este, teria dado um lugar também a Jesus. Deus não Se encontra num espaço ao lado dos outros espaços. Deus é Deus: Ele é o pressuposto e o fundamento de todo o espaço existente, mas não faz parte dele. A relação de Deus com todos os espaços é a de Senhor e Criador. A sua presença não é espacial, mas precisamente, divina. “Sentar à direita de Deus” significa uma participação na soberania própria de Deus sobre todo o espaço.» (Bento XVI, 2011.) É, portanto, uma expressão simbólica, para manifestar o “senhorio” de Jesus. Porque estando à sua direita, participa do “senhorio divino”. Já o autor da carta aos Efésios (cf. Ef 1,17-23), provavelmente o Apóstolo Paulo, mensionava em sua carta, a ascensão do Senhor como continuação de sua ressurreição com estas palavra: “ressuscitando-o de entre os mortos e fazendo-o assentar à sua direita nos céus, muito acima de qualquer Principado e Autoridade e Poder e Soberania”. (Ef 1,20-21)  E continua o Santo Padre, «uma vez que está junto do Pai, Jesus não está longe, mas perto de nós. Agora, já não Se encontra num lugar concreto do mundo, como antes da “ascensão”; no seu poder, que supera todo e qualquer espaço, está presente junto de todos, podendo ser invocado por todos, através da história inteira, e em todos os lugares.» (ibid. Bento XVI)
“Durante quarenta dias apareceu-lhes e lhes falou do Reino de Deus.” (At 1,3) Lucas pretende simplesmente estabelecer um período determinado, simbólico, em que determinante é o que se refere ao preparar os discípulos para a vinda do Espírito Santo. Mas, a ascensão não é puro simbolismo, é a afirmação cristológica que marca o destino final do profeta galileu. A ascensão que Jesus quis passar para construir a redenção, em marcha ao Reino, significa um momento decisivo que põe fim ao período pascal, mistério pedagógico para fazer ver os discípulos que chegou a hora de anunciar ao mundo a salvação de Deus.
Para o relato dos Atos o valor bíblico simbólico do número quarenta, reaparece como apareceu no início da quaresma e nós já conhecemos seu signficado: Expressa a pedagogia divina dos quarenta anos que Israel caminhou no deserto (cf. Dt 8,2-6). Os quarenta dias que Moisés passou no Monte Sinai para receber a Lei divina (cf. Ex 24,18); os quarenta dias que Jesus passou no deserto antes de iniciar sua vida pública (cf. Lc 4,1-2). Trata-se portanto, de um período de aprendizagem, nos Atos é um tempo “pascal” extraordinário para firmar a fé dos apóstolos. Para Lucas este tempo é chegado ao fim e o Ressuscitado, que não pode ficar mais com seus discípulos, carregando-os pela mão, de agora em diante os acompanhará para sempre o Espírito Santo e eles precisam abrir-se a esta nova realidade.
Lucas nos Atos narra o mistério da ascensão para chamar atenção sobre a necessidade dos apóstolos entrarem em ação, enviados pelo Ressuscitado. Passou o tempo da prova, já experimentaram que o Senhor está vivo, mesmo que ainda haja certa incredulidade. A mensagem do Reino não pode ficar sem ser ouvida. É chegado o momento de uma ruptura necessária para a Igreja nascente, que tem que sair de si mesma, da passividade gloriosa da Páscoa, para enfrentar a tarefa missionária do testemunho e da evangelização.
“A última aparição de Jesus termina com a entrada irreversível de sua humanidade na glória divina, simbolizada pela nuvem e pelo céu” nos diz o catecismo. “Jesus foi elevado à vista deles, e uma nuvem o ocultou a seus olhos”. (At 1,9) A nuvem, este elemento simbólico «recorda-nos o momento da transfiguração, em que uma nuvem luminosa pousou sobre Jesus e os discípulos (cf. Mt 17,5; Mc 9,7; Lc 9,34-35). Recorda-nos a hora do encontro entre Maria e o mensageiro de Deus, Gabriel, o qual lhe anuncia que a força do Altíssimo A “cobrirá com a sua sombra” (cf. Lc 1,35). Recorda-nos a tenda sagrada de Deus na Antiga Aliança, onde a nuvem é o sinal da presença de Javé (cf. Ex 40, 34-35), o qual, inclusive durante a peregrinação no deserto, precede Israel como nuvem (cf. Ex 13, 21-22). A afirmação sobre a nuvem é claramente teológica. Apresenta o desaparecimento de Jesus não como uma viagem em direção às estrelas, mas como a entrada no mistério de Deus. Com isto alude-se a uma ordem de grandeza completamente diversa, a outra dimensão do ser... Jesus, que Se despede, não parte para certo lugar sobre um astro distante. Ele entra na comunhão de vida e de poder com o Deus vivo, na situação de superioridade de Deus sobre todo o espaço. Por isso, não “partiu”, mas, em virtude do próprio poder de Deus, está agora presente junto de nós e para nós... O desaparecimento de Jesus por meio da nuvem não significa um movimento para outro lugar cósmico, mas a sua assunção no próprio ser de Deus e, desse modo, a participação no seu poder de presença no mundo.” (Ibid. Bento XVI.) 
No final do evangelho, Mateus (cf. Mt 28, 16-20) como Lucas nos Atos, narra a ascensão como o momento dos discípulos levarem o evangelho onde Jesus não pode ir: ao mundo todo. “Os onze discípulos caminharam para a Galiléia, à montanha que Jesus lhes determinara”. (Mt 28, 16) Sim, é na Galiléia, uma região cuja situação geográfica fazia dela o ponto de encontro de diversas culturas e povos diferentes, como uma significativa população pagã, chamada “Galiléia dos pagãos” (cf. Mt 4, 15) onde o movimento de Jesus vai começar. Ele quis viver ali inserido naquela realidade, percorreu os seus caminhos ao encontro das pessoas para anunciar-lhes o evangelho; foi ali onde os primeiros discípulos foram chamados (cf. Mt 4,18s) e é ali que Jesus Ressucitado quer reuni-los de novo. É preciso regressar à Galiléia. A Galiléia se torna um novo ponto de partida. A fronteira com os povos pagãos significa que agora, o anúncio e a prática de Jesus vão ser propostos a todo o resto da humanidade. Onde tudo começou Mateus apresenta o Ressuscitado dando um claro poder, e a promessa de fazer discípulos todo mundo, manifestando assim o caráter universal da pregação do Reino, a salvação de Deus com a humanidade não terá limites.
Outro aspecto nos chama a atenção, a montanha. Mateus já havia escolhido a montanha para o ensinamento de Jesus (cf. Mt 5-7) Agora, do alto da montanha, com todo o seu simbolismo bíblico, Jesus dá aos seus discípulos todo o poder de comunicar a salvação: “Todo o poder foi-me dado no céu e sobre a terra. Ide, portanto e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-os...” (Mt 28, 18-19)  O Batismo será o Sacramento de inicação dos que querem levar uma vida nova neste mundo, «por meio do Batismo, a nossa vida já está escondida com Cristo em Deus; na nossa verdadeira existência, estamos já “no alto”, junto d’Ele, à direita do Pai (cf. Cl 3,1-3). Se nos embrenharmos na essência da nossa existência cristã, então tocamos o ressuscitado: aí somos plenamente nós próprios. O tocar Cristo e o subir estão intrinsecamente conexos.» (Ibid. Bento XVI)
Celebrando a ascensão do Senhor, percebemos que um dos sentidos desta festa é sermos convidados a dirigir nosso olhar ao alto, a esse lugar de onde podemos ver as coisas com outra perspectiva. Já se disse que o cristão deve ter os olhos postos no céu e os pés firmes sobre a terra.  Jesus subiu ao céu, que simbolicamente não são as nuvens mas o lugar em que Deus vive. E nos oferece a possibilidade de do alto ver as situações, a história, a realidade a partir da sua perspectiva. A partir daí pode ser que percebamos que as aspirações que temos e nas quais investimos tanto tempo e energia não pagam a pena. Pode ser que nos demos conta que às vezes descuidamos do que realmente importa na vida: nossas relações com os outros. Pode ser que nos faça avaliar em que estamos descuidando nossa responsabilidade, nosso testemunho, as atenções que devemos a nossa família etc.
O céu do qual Jesus fala é essa dimensão, nossa vida. Jesus quer nos introduzir hoje nessa dimensão de onde podemos ver e julgar o sentido profundo do que fazemos, vivemos e somos. Por esse olhar o céu não significa desligar-se da terra e de seus problemas. Ao contrário significa contemplá-los a partir de outra perspectiva e de outro olhar. Por isso Jesus pede que os seus discípulos na ascensão não fiquem olhando o céu mas que se comprometam com a história, com a desafiante missão. Aproveitemos para ver a nossa vida com outra ótica, tomemos certa distância de nossos problemas. Deixemo-nos levar por Cristo até esta altura de onde podemos ver com mais clareza.
A mensagem desta festa também é uma mensagem ativa e comprometedora para nós cristãos batizados: “Ide e fazei discípulos.” (Mt 28, 19) Depois da ascensão começa portanto, o tempo da Igreja, o nosso tempo. Cristo sobe ao céu e agora devemos ser nós os que com nossas palavras e ações, ensinamos aos que não creem o caminho que eles têm que seguir para encontrar-se com Cristo. Mas, com uma certeza, em meio às dificuldades, perseguições e desafios da missão, uma convicção nos acompanha: “Eu estarei convosco todos os dias.” (cf. Mt 28,20) Jesus Ressuscitado estará sempre com a sua Igreja, acompanhando-a, ajudando-a a superar as crises e dificuldades da caminhada. Ele estará com seus discípulos e discípulas, com todos os que se comprometeram com seu projeto de amor até o final dos tempos.
Bibliografia: 
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.

Catecismo da Igreja Católica, Edição típica Vaticana.São Paulo, Edições Loyola, 2000.
Ratzinger, Joseph (Bento XVI). Jesus de Nazaré, da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo, Planeta, 2011.

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