Pe. José Assis Pereira Soares
Pároco da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima
Campina Grande/PB
Fechado o ciclo pascal anual, a Liturgia nos convida a celebrar, já imersos no Tempo Comum, a solenidade da Santíssima Trindade. Trata-se da oportunidade de adentrarmos neste Mistério do amor que é o Deus Uno e Trino. Nem necessitaríamos de um dia especificamente litúrgico para celebrar a Trindade Santa, pois “as celebrações são e acontecem no nome (= autoridade, pessoa, garantia) do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No nome, e não nos nomes, porque Deus é único e uno. (cf. CIC 233) Em cada celebração o Pai leva a cabo o Mistério de sua vontade, dando seu Filho amado e seu Santo Espírito para a salvação dos participantes e do mundo inteiro e para a glória de seu nome. Esse é o Mistério que Cristo revelou e realizou em nossa história segundo um plano, uma disposição sabiamente ordenada (= economia da salvação) e com ordens de ser perpetuado precisamente nos e com seus efeitos salvíficos no decurso dos séculos (cf. CIC 1065). A Igreja, fiel intérprete da vontade de seu instituidor Cristo Jesus, anuncia e celebra o Mistério trinitário em sua concretização, ápice e fonte, como a liturgia.” (Sodi, 2010.)
Diante de tão grande Mistério confesso minha profunda limitação, reconheço com sincera humildade minha ignorância e o meu espanto, restando-me tão somente dizer que creio! Mas, ensina-nos o Papa Bento XVI que “nenhuma fala humana pode exprimir devidamente o mistério de Deus e, contudo não podemos calar-nos em face daquele que é o fundamento e a possibilidade de toda nossa fala.” (Ratzinger, 2007.) Assim, consciente de meus limites, mas igualmente certo de que não posso me calar assumo o desafio de falar algo de Deus.
Para muitos cristãos a imagem de Deus está associada ao medo. Deus é aquele que tudo vê, tudo sabe, descobre nossas falhas e nos castiga já neste mundo. Parece até que se prefere esta imagem do “velho Deus”, juiz temível, vingador implacável, inacessível e distante, que inventamos e que tem pouco a ver com a realidade de Deus do que a imagem de Deus revelada por Jesus.
O Mistério da Santíssima Trindade é o Mistério central da fé e da vida cristã e é o Mistério de Deus em si mesmo. «Ser cristão, acima de tudo, significa crer que há um Deus... O núcleo da confissão cristã, o núcleo do ato cristão de existir está na afirmação Deus existe. A afirmação trinitária não está em algum lugar na periferia do cristianismo, mas constitui o seu cerne. Deus é o amor, significa precisamente que ele existe como Trindade. Como amor ele é desde sempre em si mesmo e segundo a sua essência, o encontro fecundo do eu e do tu e precisamente assim a realidade suprema. (Ibid. Ratzinger.)
Mas, não basta saber que Deus é Uno em três pessoas, é necessário que este Mistério se viva de modo experiencial. Devemos promover tudo àquilo que ajude nosso povo a encontrar Deus, sentir e experimentar o amor de Deus Pai, a amizade profunda com Cristo Senhor, a presença amorosa do Espírito Santo. Mais do que pregarmos sobre a Trindade Santa o que ajudará mais é a pessoal e profunda experiência de Deus, sobretudo através da Liturgia e da Oração.
A Liturgia da Palavra hoje nos ajuda a contemplar dois testemunhos experienciais de Deus. O primeiro vem da experiência de fé de Moisés e do povo de Israel. O livro do Êxodo nos relata (cf. Ex 34,4-6.8-9) a experiência mística de Moisés com Deus no monte Sinai. O texto dá a entender que é Deus mesmo quem fala, quem revela o que significa o seu nome. “Iahweh! Iahweh... Deus de ternura e de piedade, lento para a cólera, rico em graça e em fidelidade...” (Ex 34,6) Deus se revela a Moisés como um Deus que não está diretamente visível, mas passa junto da humanidade, revelando-se através de seus atributos de misericórdia; como aquele que perdoa o pecado e exige justiça. Esses aspectos de Deus são os sinais da sua presença, mostrados ao longo da história da salvação. Moisés diante desses sinais de Deus se reconhece pecador, se sente desconcertado ante este Mistério por excelência, indecifrável que é o amor divino e animado por essa extraordinária grandeza, sente-se chamado a renovar-se e a renovar a Aliança. Apesar de o povo ser cabeça dura e resistir teimosamente em sua atitude de pecado, em sua desobediência a Deus. Moisés se atreveu a interceder por esse povo: “Iahweh, se agora encontrei graça aos teus olhos, continua mesmo que este povo seja de cerviz dura. Perdoa as nossas faltas e os nossos pecados, e toma-nos por tua herança.“ (Ex 34,9)
O outro testemunho experiencial de Deus é o do Apóstolo João e de sua comunidade no primeiro século cristão. João está deslumbrado com a contemplação de Deus que ele não hesitou em defini-lo assim: “Deus é amor: aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele” (1Jo 4,16). No seu evangelho (cf. Jo 3, 16-18) encontramos provavelmente o mais importante versículo de todo ele, a afirmação clara do amor de Deus: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele.” (Jo 3, 16-17) Esta declaração se deu num encontro de Jesus com um importante fariseu, membro do sinédrio. Nicodemos tinha medo de seus correligionários, e a causa desse medo é que o haviam visto com o “rabi” de Nazaré, que ele o procurava a noite. Os fariseus, os anciãos e os escribas desconfiavam daquele pregador que arrastava multidões. Como havia naquele tempo feito outros pseudo-messias. Nicodemos havia intuído sem dúvida, que o caso de Jesus de Nazaré era diferente. Por isso procura conhecê-lo de perto, sondar-lhe, para ouvir de modo direto qual era a sua mensagem e quais os seus propósitos. Jesus o acolhe amavelmente e lhe fala. Suas palavras surpreendem e desconcertam Nicodemos, que pouco a pouco vai descobrindo a grandeza do anúncio do Cristo. Assim ele o dará a entender mais tarde quando numa reunião do sinédrio recriminará aos demais membros do conselho o seu julgamento precipitado contra Jesus, a quem eles nem sequer o haviam escutado. Finalmente, quando Jesus estava morto na cruz, Nicodemos juntamente com José de Arimatéia pedirá a Pilatos a liberação do corpo sem vida de Jesus para sepultá-lo com dignidade. Último gesto daquele que procurava Jesus às escondidas e que não teve a coragem de assumir sua admiração e se declarar seu seguidor.
Numa dessas noites Jesus lhe falou de muitas coisas. Entre elas, do grande amor que Deus tem ao mundo. Amor que se manifesta e se evidencia na entrega do próprio Jesus. “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo 3, 16) Certamente aquilo era extraordinário. Deus ama e quer que o mundo se salve. Deus não quer condenar o mundo.
Não faz muito tempo que aprendíamos no catecismo que a alma tinha três inimigos: o mundo, o demônio e a carne. Dessa visão resulta certa atitude de medo do mundo por parte dos cristãos levando-os a fugir ou protegerem-se do mundo, pois ele poderia afastar a pessoa do ser cristão. Mas, o mundo é amado por Deus e aí nos deparamos com um paradoxo da fé cristã. “De um lado, a fé nos sugere erguer a nossa cabeça, ‘olhar para cima’, entregar-nos ao Deus eterno. Mas, do outro lado, esta mesma fé nos leva a um novo compromisso com um ‘mundo amado por Deus’. O mundo tem uma profunda proximidade com Deus. A simples fuga do mundo e de seus anseios não é uma atitude cristã. Sim, em muitas situações o mundo, com as suas promessas efêmeras, torna-se a cristalização, e quase a encarnação da vontade rebelde, dos homens que se fecham contra Deus. neste sentido, o mundo é inimigo de Deus, avesso ao evangelho, e deve ser odiado pelo cristão (cf. Jo 15,18s; 17,14.25). No nosso texto, o mundo em que o Deus Trino manifesta seu amor não é tampouco um mundo paradisíaco, ao qual poderíamos entregar-nos em confiança indiscriminada. É o mundo dividido pelo pecado, carregado de culpa, mais ainda capaz de procurar e esperar Deus. é finalmente o mundo que, embora culpado, é de tal modo amado que Deus lhe envia o ‘cordeiro divino que tira o pecado do mundo’ (Jo 1,29)... O amor de Deus para com este mundo culpado mas esperançoso, ensina-nos que o amor de Deus, que se torna santidade divina no homem, deve ‘contagiar’ o mundo. Esta visão não requer tensão propriamente entre mundo e céu, mas transporta-a para dentro do mundo, para dentro da nossa existência.” (Bouzon, 1978.)
Portanto, é necessário reler no evangelho que Deus é amor, que Deus ama o mundo, este mundo, todo real e perigoso que se queira, se disse que é objeto do amor de Deus. Por isso mesmo precisamente é dito também que o mundo é objeto de salvação. A intenção mais clara de Deus é que o mundo se salve. Na realidade, no final de tudo, aqueles que serão afastados da presença de Deus serão por sua própria culpa. “Quem nele crê não é julgado: quem não crê, já está julgado, porque não creu no Nome do Filho único de Deus.” (Jo 3,18) Quer dizer, a sentença condenatória, mais que uma condenação será um reconhecimento de uma situação livremente querida e gestada pelo condenado. João insiste que não é necessária uma sentença condenatória de Deus para o mundo. Tampouco a nega e inclusive falará dela em outra ocasião (cf. Jo 9,39). Mas, é a própria pessoa quem por sua obstinação, recusando a verdade e afastando-se da salvação oferecida será julgada. Não obstante sempre nos restará a profundidade de olhar e admirar o amor manifestado em Jesus Cristo na cruz, dela nos vem a salvação. Crer no Filho significa aceitá-lo como Salvador e doador da vida eterna. Quem assim o faz, participa já, agora, na vida eterna que ele oferece a toda a humanidade. Ele veio oferecer a todos a vida eterna, a sentença de condenação se lha dá ao que recusa a vida e a salvação que o Filho oferece. Este permanece na morte e, portanto, ele mesmo se condena. Mas, aquele que crê não será condenado, segue dizendo Jesus.
Cristo não veio para julgar o mundo. Tampouco para “separar” os dois “mundos”. Vivemos rodeados do mal, como o trigo e o joio, mas Jesus veio como Salvador. Se Deus ama o mundo nós devemos amá-lo também, pois é o amor de Deus que muda, transforma e santifica enquanto ama. E é de se supor que só uma atitude de proximidade e de amor ao mundo, por parte dos cristãos que poderá salvá-lo do pecado. Porque os que odeiam e desprezam o mundo só podem contribuir com a sua destruição e perversão. Sem dúvida os que amam o mundo são capazes, por amor, de reconstruí-lo, de purificá-lo, de santificá-lo. Se um dia nos decidíssemos a amar de verdade o mundo, a amá-lo mais que apropriarmo-nos dele ou explorá-lo, é possível que descobríssemos como este mundo tão mal, tão carente, tão obstinado, tão teimoso, tão hostil e coberto de injustiças, tão imundo, começasse a ser melhor, a ser como Deus quer. Se Deus ama o mundo, porque nós não o amamos?
Tomemos consciência dessa verdade, reavivemos nossa fé em Deus, Uno e Trino e alcancemos a fidelidade de ser amados por Deus e de amá-lo eternamente.
Bibliografia
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
Sodi, Manlio. Triacca, Aschille M.(orgs.). Dicionário de Homilética. São Paulo, Paulus/Loyola, 2010.
Ratzinger, Joseph. Dogma e Anúncio. São Paulo, Loyola, 2007.
Bouzon, Emanuel. Romer, Karl Josef. A Palavra de Deus no anúncio e na oração. São Paulo, Paulinas, 1978
Nenhum comentário:
Postar um comentário