O quarto domingo da Quaresma é também chamado domingo “laetare”. A liturgia nos convida a experimentar uma alegria profunda pela proximidade da Páscoa, a alegria da Ressurreição. Isso parece chocar-se um pouco com o caráter austero da Quaresma, no entanto, o convite a alegria vem da monição de entrada da missa: “Alegra-te, Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes, exultai de alegria! Saciai-vos com a abundância de suas consolações.” (cf. Is 66,10-11) Esta bela e simples antífona do Missal Romano é patrimônio secular da Igreja. A alegria tem muito sentido com a Quaresma, pois ela não pode ser triste. Tendo já percorrido a metade da nossa caminhada de preparação para a páscoa, somos convidados a deixar para trás qualquer atitude ou sombra de tristeza e assumir uma atitude de alegria pela consolação que nos vem do amor de Deus. O esforço de conversão que estamos fazendo, inclusive nossa penitencia, não devem estar impregnados de nenhuma tristeza.
Neste quarto domingo da Quaresma batismal só entenderemos a relação da perícope evangélica da cura do cego de nascença (cf. Jo 9,1-41) com o Batismo se nos lembrarmos de que a Igreja primitiva chamava o batismo de “iluminação”. “O relato do cego de nascimento foi utilizado como texto de celebração no grande escrutínio ou exame dos catecúmenos antes do batismo, pelo menos desde o séc. III. Nesta liturgia se desenrolava a profissão de fé dos batizandos. Portanto é texto batismal, já que se trata de uma ablução e de nova iluminação, equivalente ao Batismo.” (Floristán, 1995.) O Batismo cristão, sacramento da fé, é iluminação da pessoa toda: espírito e coração, sentimentos e conduta, por isso São Justino, filósofo convertido ao cristianismo e mártir do século II dizia: “Ao batismo dá-se o nome de iluminação, porque os iniciados nesta doutrina ficam iluminados na sua inteligência...” (Justino, Apologia 2, Antologia Litúrgica) E outro padre da Igreja Gregório Nazianzo do séc. IV também ensinava que o Batismo: ”Esta iluminação é esplendor das almas, mudança de vida, compromisso da consciência para com Deus; esta iluminação é ajuda da nossa fraqueza; esta iluminação é renuncia à carne, docilidade ao Espírito, comunhão com o Verbo, renovação da criatura, dilúvio que engoliu o pecado, participação na luz, desaparecimento das trevas, esta iluminação é o veiculo que leva a Deus, morte com Cristo, alicerce da fé, perfeição do espírito, chave do Reino dos Céus, mudança de vida, desaparecimento da escravidão, quebra das cadeias, transformação dos costumes; esta iluminação – será preciso fazer uma enumeração mais longa? – é o mais belo e magnífico dos dons de Deus.” (Gregório Nazianzo, Sermões, Antologia Litúrgica) O prefácio próprio da Missa deste domingo faz a ligação entre a cura do cego, a luz da fé e o Batismo lembrando que: “pelo mistério da encarnação, Jesus conduziu à luz da fé a humanidade que caminhava nas trevas”. (Prefácio, 4º Domingo da Quaresma, Missal Romano).
A Liturgia da Palavra, sempre muito rica, mas, sobretudo nestes domingos da Quaresma do ciclo A, portadora de uma abundância de imagens, nos ajuda a relacionar a Palavra de Deus com nossa vida. No primeiro domingo nos apresentou a imagem do deserto como lugar de provação e revisão de vida, no segundo domingo a imagem da montanha como lugar de oração que transfigura nossa vida, no domingo passado a imagem da fonte de água viva, capaz de satisfazer a sede de Deus e hoje a luz; Jesus é a luz, que abrirá nossos olhos e nos ajudará a ver o rosto de Deus, reconhecê-lo e proclamá-lo e também a ver-nos a nós mesmos, e reconhecer-nos como seus discípulos, convidados a dar testemunho do que Deus fez conosco e em nossas vidas. Esse “abrir os olhos” com outros parâmetros diferentes dos que regem nossa sociedade.
A primeira leitura (cf. 1Sm 16,1.6-7.10-13) nos apresenta a ascensão de Davi ao trono de Israel. Sabemos que esta história foi idealizada pelos seus autores que queriam exaltar a figura de Davi como rei justo. O profeta Samuel não queria ceder, era contra e se opunha com todas as suas forças à “monarquia” em Israel, não porque era um profeta tradicional, mas porque ele sabia que a monarquia de Israel copiaria os sistemas opressores dos outros povos poderosos. (cf. 1Sm 8-10) A história de Israel é tão escabrosa como todas as histórias dos povos vizinhos, porém Samuel espera que com a escolha de Davi, o rei seja justo e bom. Por isso, nos recorda sua origem simples e humilde do pastor que chegou a ser rei. E isso Israel não deveria esquecer nunca. Deus escolhe Davi porque ele é o menor: “Os homens vêem apenas com os olhos, mas Iahweh olha o coração” (1Sm 16,7). As aparências enganam, dizemos frequentemente e é verdade. Se alguém é bom ator pode aparentar facilmente ser o que não é. Por isso é tão difícil julgar e entender os outros: porque todos somos um pouco atores no teatro de nossa própria vida, diante dos outros. Mas ante Deus não é assim: Deus olha nosso coração e esquadrinha todas as nossas ações. Isto deve ser um consolo para nós, quando agimos com coração puro. Os outros poderão julgar-nos pelas aparências, ou por seus interesses, mas Deus sempre nos julgará pela bondade ou maldade de nosso coração e isso também nos assusta.
Os cristãos batizados, iluminados deveram caminhar na vida como filhos e filhas da luz, assim pede-nos a Carta aos Efésios (cf. Ef 5,8-14). Supõe-se que o autor desta carta, um discípulo de Paulo, esteja falando a uma comunidade que noutro tempo era constituída de pagãos. A recordação dessas origens humildes implica um processo pedagógico que sempre busca a terapia espiritual de reviver realidades profundas: “Outrora éreis treva, mas agora sois luz no Senhor: andai como filhos da luz.” (Ef 5,8) Santo Agostinho vai dizer: “Não é em vós que sois luz, porque em vós há trevas, mas em Deus há luz”. (Sto. Agostinho, Comentários aos Salmos, Antologia Litúrgica) Estas palavras nos estimulam a percorrer o caminho da conversão e renovação espiritual. Em virtude do batismo, somos iluminados; já recebemos a luz de Cristo. Portanto, somos chamados a conformar nossa existência com o dom de Deus: a ser filhos da luz! Na liturgia do Batismo de adultos, no gesto de entregar a vela acesa, símbolo da luz de Cristo é feito este convite ao batizando: “Deus te tornou luz em Cristo. Caminha sempre como filho da luz...” (Ritual da Iniciação Cristã de Adultos)
O evangelho de João, o relato da cura de um cego de nascença (cf. Jo 9,1-41) é um dos episódios mais densos do quarto evangelho. “O tema da cegueira é bastante central na missão de Jesus. Não há dúvida que, entre as curas de Jesus, as mais relevantes devolveram a visão aos cegos. Na tradição judaica, abrir os olhos era a cura messiânica por excelência, o sinal para a identificação do verdadeiro Messias, segundo a tradição profética... Os evangelhos relatam, entre todos os cegos curados por Jesus, sete deles. O número sete evoca a totalidade. Cristo vem abrir os olhos de todos para que vejam o Invisível.” (Miranda, 2000.)
Uma cura, um sinal, um diálogo, uma polêmica com os judeus, que nos apresenta Jesus como revelador de Deus que vai destruindo concepções erradas que se tinham sobre Deus, sobre a vida, sobre a enfermidade, sobre o pecado e sobre a morte. João enfrenta com o homem cego de nascimento os fariseus, que são os que decidem sobre as questões religiosas quando ele escreve o seu evangelho. O cego de nascimento, na mentalidade judaica daquele tempo, devia ter uma culpabilidade, bem pessoal, herdada de seus pais ou antepassados para que nascesse cego. Todas as doenças, as desgraças, os sofrimentos eram considerados consequência de algum pecado.
O método empregado por Jesus para curar o cego é para nós bastante esquisito. “Para restituir a vista ao cego de nascença, o Senhor começou por ungir-lhe os olhos com sua saliva misturada com terra. Cegos também nós nascemos de Adão e precisamos de ser iluminados pelo Senhor. Ele misturou sua saliva com a terra como fora predito: A verdade brotou da terra (cf. Sl 84,12). E ele próprio disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” (Jo 14,6) (Sto. Agostinho, Ofício das Leituras, 4º Domingo, Liturgia das Horas)
O simbolismo batismal com o qual está composto o relato é evidente: o barro da terra, a saliva, ou hálito - que simboliza o espírito, a força de uma pessoa; o envio à piscina de Siloé para banhar-se (cf. Jo, 9, 6-7) – é a água prometida à samaritana (cf. Jo 4)) – que cura a cegueira do homem. Podemos dizer que aquele homem não é curado = salvo, pela saliva e o barro, mas por lavar-se, submergir-se no mistério da vida de Cristo. É um jogo de imagens cheias de sentido; daí seu significado batismal originário.
Começam então os interrogatórios, feitos ao cego pelas autoridades. (cf. Jo 9, 8-34) O homem cego, que chega a ver, que no princípio não sabe quem é Jesus, pouco a pouco vai descobrindo o que Jesus lhe deu, e que os fariseus lhe querem tirar. Este pobre homem que veio cego ao mundo tem que escolher entre uma religião de vida, de luz, ou uma religião de morte, a que lhe propõem os "fariseus". Diz-se que no centro desta polêmica está o debate entre a comunidade Joânica, procedente do judaísmo, que aceitou Jesus como Messias, frente ao judaísmo da sinagoga. A atualização, sem dúvida, deste tema, nos mostra que enquanto a religião não for humana, compreensiva, iluminadora, misericordiosa e restauradora, não tem futuro na humanidade. E isso é o que veio trazer Jesus ao coração da religião de seu povo.
Os vizinhos, os parentes, os que lhe conheciam em sua cegueira se assombram com aquele acontecimento. Algo maravilhoso aconteceu, porque o que vem de Deus não é compreendido senão pela fé. Toda aquela gente não podia compreender, necessita olhos diferentes para ver o que aconteceu. O interrogatório se faz cada vez mais denso até arrancar daquele homem todo medo, pois desde que foi iluminado por Cristo, ele se tornou uma pessoa antes de tudo livre, não vende suas convicções a ninguém, diz o que pensa; além disso, é corajoso, não se deixa intimidar por aqueles que o ameaçam ou recorrem à violência; é sincero, não renuncia à verdade, nem quando esta incomoda ou desagrada a quem está por cima; mantém-se numa permanente posição de procura e suporta até a violência, preferindo antes ser expulso da instituição que renunciar à luz recebida, do que contrariar a sua consciência.
Quando Jesus ouve que aquele homem foi rechaçado pelo mundo religioso à sua volta sai ao seu encontro (cf. Jo 9,35-41). É Deus mesmo quem saiu ao seu encontro e quem lhe abriu os olhos de sua vida para que possa sentir-se livre. E o homem se entrega completamente a Ele, neste Deus, em Jesus, e o cego crê: “Eu creio, Senhor! E prostrou-se diante de Jesus.” (Jo 9, 38) Ele é seu Senhor. No cego de nascimento estão todos nós homens e mulheres submersos na treva até que Cristo traga o conhecimento que ilumina: é a experiência verdadeira das falsas seguranças dos judeus e do mundo. Mas outros, sem dúvida, se fecham e se afirmam no que crêem e por isso permanecem em sua cegueira.
“Acaso também nós somos cegos?” (Jo 9, 40) É o grito de soberba dos fariseus que deveria converter-se em humilde reflexão para cada um de nós. Não basta ter olhos para ver. Os olhos necessitam luz para ver. Temos querido beber da fé dos pobres à fé ilustrada. Tantos cursos, tantas conferências teológicas e seminários só terão um bom efeito se não nos esquecermos que não é o muito saber que enche e satisfaz a alma, mas sim, o sentir e o ver internamente com o sentir e o olhar de Deus. Aquele que não quer ver encontrará sempre razões para não ver. Os fariseus não queriam ver Jesus como Messias e Mestre e, por isso, buscavam qualquer razão, ou pretexto, para desacreditar-lhe. Não há pior cego que o que não quer ver! Aos fariseus não lhes interessava ver a verdade, porque a Verdade de Deus, seu messianismo, deixava a descoberto suas hipocrisias e falsidades. O mesmo se passa com cada um de nós no cotidiano de nossas vidas: quando não nos interessa que uma coisa seja como é, buscamos mil razões para vê-la de outra maneira. Como nos é necessária a luz de Cristo para ver a realidade em sua verdadeira dimensão! Sem a luz da fé somos praticamente cegos, faz falta que toda nossa vida seja iluminada pela luz espiritual. Mais ainda, esta luz há de resplandecer na santidade de nossa vida para que atraia a outras pessoas que a desconhecem. Tudo isso supõe conversão e crescimento no amor, especialmente neste tempo de Quaresma.
Jesus hoje nos convida a lavar nossos olhos e purificar nosso olhar nas águas purificadoras do sacramento da Reconciliação, aí encontraremos a luz. É necessário, portanto este exercício de liberdade, humildade e sinceridade para purificar nosso olhar. Até nossos interesses mais egoístas e recônditos podem servir-nos de “catarata” para desfigurar a visão. O cego de nascimento queria ver e não ocultou a verdade do que via, apesar dos empecilhos que os estavam pondo os fariseus. Façamos nós o mesmo: purifiquemos nosso olhar para ver a verdade tal como é, a verdade de nós mesmos e do mundo, ver com objetividade a realidade e nos outros ver, defeitos, virtudes e qualidades como Jesus e não com os nossos mesquinhos interesses, vendo apenas o que nos interessa. Ver enfim, as cores da presença luminosa de Deus no mundo.
Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
Floristán, Casiano. Catecumenato, história e pastoral da iniciação. Petrópolis, Vozes, 1995.
Secretariado Nacional de Liturgia. Antologia Litúrgica, textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio. Fátima (Portugal), Gráfica de Coimbra, 2003.
Miranda, Evaristo, Eduardo. Corpo Território do Sagrado. São Paulo, Loyola, 2000.
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