sábado, março 19, 2011

Quaresma, caminho interior de renovação pascal

Padre José Assis Pereira Soares - Pároco de Fátima


A Quaresma é empreender um caminho interior, espiritual e de renovação pascal em que o cristão entrou, por graça, com o Batismo. A cada ano e a cada dia os cristãos somos chamados a interiorizar sempre mais este mesmo caminho de transfiguração de si mesmo junto com Jesus, até deixar-se configurar plenamente a ele e dizer como o Apóstolo Paulo, “já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.” (Gl 2,20) O primeiro domingo da Quaresma considerava um aspecto importante da existência humana: “a tentação”. A liturgia deste segundo domingo nos oferece uma mensagem convergente, simbolizada pela palavra “caminho”.  
A história da salvação começou com a fé de um homem, Abraão. O relato da sua vocação (cf. Gn 12,1-4) abre hoje a liturgia da Palavra. Abraão ao que parece é originário do vale dos rios da mesopotâmia, era “antepassado dos israelitas, emigrou para Canaã (Gn 11,27ss). Foi em Canaã que ocorreu a primeira comunicação divina a Abraão e a promessa de uma grande posteridade (Gn 12, 1-3). Abraão pertence ao período situado entre 2000-1500 a.C.. Não é mais possível considerá-lo como uma pessoa inteiramente fictícia, criada para personificar uma tribo, muito embora nem todas as tradições a ele referentes tenham o mesmo valor histórico e cultural. A importância de Abraão reside no fato de que, com ele, tem inicio a revelação bíblica.” (McKenzie, 1983)
«Iahweh disse a Abraão: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei”» (Gn 12,1-2) A carta aos Hebreus descreve profundamente este momento: “Foi pela fé que Abraão, respondendo ao chamado, obedeceu e partiu para uma terra que devia receber como herança, e partiu sem saber para onde ia. Pela fé residiu como estrangeiro na terra prometida, morando em tendas com Isaac e Jacó, os co-herdeiros da mesma promessa. Pois esperava a cidade que tem fundamentos, cujo arquiteto e construtor é o próprio Deus”. (Hb 11,8-10)   
Abraão e Sara deixam para trás a cultura dos “zigurat”, a grandiosidade dos deuses mesopotâmicos e empreendem o caminho da fé, da confiança absoluta em Deus. Começa assim idilicamente se quisermos, uma nova maneira de entender a religião como experiência da confiança num Deus Criador e Salvador. Esta é a chave de fé de Israel. Os deuses babilônicos poderiam ser até “muito cultos”, porém, nunca quiseram a confiança dos homens e mulheres somente os submeter. Abraão deixou seus deuses, seus ídolos e começou a bela aventura do encontro de Deus. Ele o encontrou, creu e obedeceu. É um caminho espiritual, uma nova orientação de vida, uma mudança interior. Abraão não pediu seguranças, nem garantias. O Senhor era sua segurança e sua garantia. Sua confiança e sua disponibilidade em fazer a vontade de Deus é um exemplo para nós. O meramente material e as novas obsessões dos nossos tempos, nos têm tirado o desejo e a liberdade para este caminho interior, espiritual, que é a busca de Deus. Igual a Abraão e Sara que deixaram para trás “seus ídolos”, também nós podemos abandonar “nossos ídolos” para nos por a caminho com toda a confiança no Deus vivo e verdadeiro que tem para nós desígnios de amor.
Quais são estes ídolos? Os que estão mais em oposição ao espírito da Quaresma são: o hedonismo, o afã de desfrutar o prazer até que o corpo aguente. A entrega sem reservas à sociedade de consumo que nos tem acostumado ao mais fácil e a eliminar de nosso quadro de vida tudo o que seja acese, mortificação e privações, como algo que não tem sentido. O afã do dinheiro que nos tem metalizado o coração e nos faz perder a perspectiva da Páscoa. O afã do poder que não se submete a nada, e não repara nos meios para conseguir as coisas a que se propõe e também que não nos deixa servir desinteressada e generosamente a todos. Todos estes ídolos têm produzido em nosso íntimo a debilidade para a luta e uma certa incapacidade de fazer frente às situações difíceis da vida, além da perda de nossa capacidade de sacrifício. Diante das dificuldades reais, a solução tantas vezes não irá pelo caminho do melhor, mas pelo caminho do mais fácil, ainda que possa estar em desacordo com os princípios da moralidade e da vida cristã.
Digamos que uma pessoa tem dificuldades no matrimônio. Se está acostumada a prestar culto aos ídolos da vida moderna começará a pensar se estas dificuldades são suficientemente graves para pensar em se separar, em romper os vínculos matrimoniais. Enquanto que se esta pessoa tem sentido do sacrifício cristão pensará melhor no que tem a fazer para que o seu matrimônio seja salvo. Digamos que um jovem tem dificuldades de convivência em sua família. Se este jovem adora aos ídolos da vida moderna sua casa se converterá num inferno. Se tem sentido de abnegação cristã, pensará nos passos de aproximação que tem que dar dentro da família para que o relacionamento familiar possa melhorar. O tempo da Quaresma vem para nos ensinar a queimar estes ídolos que esvaziam de sentido a austeridade e o sacrifício para empreender um itinerário de configuração com Cristo que vai subindo até a Páscoa para dar na cruz o máximo testemunho de amor e de fidelidade ao Pai.
A outra referência ao caminho neste domingo é o Evangelho (cf. Mt 17,1-9). Devemos pensar que uma experiência muito intensa vivida por Jesus com alguns de seus discípulos, marcou a tradição desta narração da transfiguração do Senhor, que foi concebida com um tom apocalíptico e com uma linguagem vetero-testamentária pertinente. O Papa Bento XVI em sua mensagem para a Quaresma deste ano comenta que: «O Evangelho da Transfiguração do Senhor põe diante dos nossos olhos a glória de Cristo, que antecipa a ressurreição e que anuncia a divinização do homem. A comunidade cristã toma consciência de ser conduzida, como os apóstolos Pedro, Tiago e João, “em particular, a um alto monte” (Mt 17, 1), para acolher de novo em Cristo, como filhos no Filho, o dom da Graça de Deus: “Este é o Meu Filho muito amado: n’Ele pus todo o Meu enlevo. Escutai-O” (v. 5). É o convite a distanciar-se dos boatos da vida quotidiana para se imergir na presença de Deus: Ele quer transmitir-nos, todos os dias, uma Palavra que penetra nas profundezas do nosso espírito, onde discerne o bem e o mal (cf. Hb 4, 12) e reforça a vontade de seguir o Senhor.»
Toda a mensagem deste Domingo está expressa no prefácio previsto para hoje: “Tendo predito aos discípulos a própria morte, Jesus lhes mostra, na montanha sagrada, todo o seu esplendor. E com o testemunho da Lei e dos Profetas, simbolizados em Moisés e Elias, nos ensina que, pela Paixão e Cruz, chegará à glória da ressurreição.” (Missal Romano)
Se lermos esta oração com calma, nos daremos conta da riqueza do conteúdo que encerra este texto. Primeiro, quer situar o acontecimento em seu contexto de tempo e lugar: “Tendo predito aos discípulos a própria morte”. Recordemos um pouco: “Jesus começou a mostrar aos seus discípulos ser necessário que fosse a Jerusalém e sofresse muito por parte dos anciãos, dos chefes dos sacerdotes e dos escribas, e que fosse morto e ressurgisse ao terceiro dia”. (Mt 16, 21) Pedro até se atreveu a admoestar seriamente a Jesus estas palavras: “Deus não o permita, Senhor! Isso jamais te acontecerá!” (Mt 16, 22) Portanto, o contexto desta passagem da transfiguração se desenvolve quando Jesus está a caminho de Jerusalém, com seus discípulos, para celebrar a Páscoa. Nesse caminho ele leva três dos seus discípulos (Pedro, João e Tiago) a uma montanha e ali acontece a metamorfose. O caminho de Jerusalém é o caminho até a morte na cruz. Os discípulos, de ressurreição não entendiam muito e nem de ser discípulos de um Mestre que ia terminar vencido em uma cruz, isso eles não podiam admitir. Neste estado de prostração e desânimo dos discípulos, Cristo necessitava fazer algo urgente para lhes levantar o moral. Por isso, segue dizendo o texto que comentamos, que “Jesus lhes mostra, na montanha sagrada, todo o seu esplendor”. De fato, o ânimo de Pedro subiu até o céu ao ver o esplendor da glória: “Senhor, é bom estarmos aqui. Se queres, levantarei aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. (Mt 16,4)
As palavras “com o testemunho da Lei e dos Profetas simbolizados em Moisés e Elias” falando com Jesus estão postas aqui para explicar o que também viram os três discípulos. Subir à montanha é o processo simbólico de aproximar-se de Deus. Moisés e Elias as chamadas “colunas” do Antigo Testamento, são dois personagens que tiveram com Deus suas experiências no monte Sinai ou Horeb. Portanto, já podemos chegar a uma das chaves concretas de leitura deste texto a partir das semelhanças com esses dois personagens mencionados. De um lado estão estes personagens para ser testemunhas da “intimidade” de Jesus com Deus. Jesus não é um impostor que fala de Deus às pessoas, sem autoridade. Moisés e Elias testificam que não é assim. Se “conversam” com ele é porque eles concedem a Jesus o “testemunho” definitivo da revelação. Ele não é somente um novo Moisés ou um novo Elias, é o Filho, como faz notar a voz celeste: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo, ouvi-o!” (Mt 16,5)
A alegria do Espírito transtorna Pedro e os outros discípulos, pelo que se vê, não necessitavam nem de tendas; prosseguir nesta visão do “esplendor” os conformava. Mas, Jesus convida-os a levantarem-se e acompanharem-no tomando novamente o caminho da vida sem medo: “Levantai-vos e não tenhais medo.” (Mt 16,7) Também um dia Moisés teve de descer do Sinai e se encontrou com a realidade de um povo que havia fabricado um bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-30); Elias também desceu do Horeb (1Re 19) sabendo que os soldados de Jezabel o perseguiriam pois queriam impor-lhe os deuses cananeus. Jesus precisa descer do monte e prosseguir no caminho para Jerusalém.
E a nossa oração termina com a frase que mostra aos discípulos o propósito da transfiguração: Jesus “pela Paixão e Cruz, chegará à glória da ressurreição.” Algo que os discípulos, por si mesmos, nunca haviam entendido. A transfiguração de Jesus é protótipo de seguimento, quem quiser segui-lo é necessário passar pelo sacrifício da própria vida. Vencer os temores, medos e tristezas. Aprender a não ter medo do sofrimento que implica a missão.
Assim como o deserto, na espiritualidade quaresmal, a montanha não é um lugar geográfico. É um lugar humano. Onde quer que se reúna a comunidade crente, há um Tabor. Mas, é preciso descer do monte, baixar à vida e encontrar os desfigurados da humanidade: doentes, pobres, sofredores e necessitados, nos quais Cristo nos espera para transformar-nos e para transfigurá-los. Os três discípulos, testemunhas da transfiguração, parecem não ter muita vontade de “descer à terra” e enfrentar o mundo e seus problemas. Eles representam todos aqueles que vivem de olhos postos no céu, alienados da realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir para renová-lo e transformá-lo. No entanto, ser seguidor e seguidora de Jesus obriga-nos a “regressar ao mundo, obriga-nos a atolarmo-nos no mundo, nos seus problemas e dramas, a fim de dar a nossa contribuição para o aparecimento de um mundo mais justo e mais feliz.
Assistimos a cada dia, às vezes passivamente e atônitos à “des-figuração” da dignidade das pessoas e até mesmo da natureza. É a transfiguração da realidade ao contrário, dominada pelo pecado. Mas, acreditamos ser possível o caminho de transformação profunda e interior das pessoas, fruto de uma conversão, confiança e intimidade com Deus, refletida em rostos que passam a irradiar serenidade, força, paz e luz, semelhantes à face luminosa de Cristo no monte Tabor.  Sejamos como estas pessoas e grupos, testemunhas que atualizam a transfiguração do Senhor no mundo, melhorando-o e apontando como sinais luminosos o caminho a seguir: “Escutar o Filho Amado do Pai”.


Bibliografia
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
Mckenzie, John. Dicionário Bíblico. São Paulo, Paulus, 1983.

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