sábado, março 12, 2011

As tentações nossas de cada dia

Padre José Assis - Pároco de Fátima



Iniciamos a Quaresma de 2011 na última Quarta-feira de Cinzas e hoje entramos nos domingos da Quaresma que nos levarão ao Tríduo Pascal. As leituras deste primeiro domingo da Quaresma nos falam das tentações com as quais o diabo pretendeu enganar, no princípio dos tempos, aos nossos primeiros pais, Adão e Eva (cf. Gn 2,7-9; 3,1-7), e, posteriormente, a Jesus. (cf. Mt 4,1-11)
Aos nossos primeiros pais, o demônio, disfarçando-se de serpente lhes tentou com a promessa do conhecimento do bem e do mal: “Deus sabe que no dia em que dele comerdes (fruto), vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e o mal.” (Gn 3,5) Já não necessitaria de Deus, porque seriam como ele, quer dizer, seriam os deuses de si mesmos. A Eva a ideia de comer deste fruto proibido lhe pareceu atraente e desejável, porque isso lhe daria inteligência. Dito isso a Adão, também para ele o fruto que lhe dava a mulher lhe pareceu muito bom e também o comeu. As consequências já as sabemos: se lhes despertou a inteligência e a primeira coisa que viram é que estavam nus, com toda sua fragilidade exposta, e assim, não podiam se apresentar diante de Deus. Fugiram e se esconderam dele, começaram a guiar-se por si mesmos.
Também nós, filhos e filhas de Eva, a ideia de nos guiarmos por nós mesmos, por nosso próprio conhecimento desobedecendo ao mandato de Deus, nos tem parecido sempre atraente e desejável, porém também é verdade que o cair nesta tentação nos trouxe muitos males ao longo dos tempos. Basta olharmos para nós mesmos e olharmos para o mundo em que vivemos, para nos darmos conta que o não nos deixarmos guiar por Deus tem feito da história da humanidade uma história de mais erros que acertos: guerras infindáveis, destruição, fome, violência e desumanidades sem conta. Resultado é que em lugar de viver na terra como num paraíso, temos que viver aqui como num “vale de lágrimas”.
Mas, se a história dos nossos primeiros pais, não superando a prova, caindo na tentação e perdendo o status que tinham no Éden, os levou do paraíso ao deserto como consequência de sua má escolha, de seu pecado. Sem dúvida nenhuma, Jesus conduzido pelo Espírito ao deserto, supera as tentações, vai até lá para tirar a humanidade pecadora definitivamente daquele lugar e ensinar que o mais importante é viver como Filho obediente à vontade do Pai.
«Os três evangelhos sinóticos contam-nos, para nossa surpresa, que a primeira ordem do Espírito é levar Jesus para o deserto “para aí ser tentado pelo diabo.” (Mt 4,1) O recolhimento interior precede à ação, e este recolhimento também é necessariamente uma luta pela sua missão, uma luta contra as deturpações da missão que se oferecem como suas reais realizações. A missão consiste em descer aos perigos do homem, porque só assim pode o homem caído ser levantado: Jesus deve (isso pertence ao cerne da sua missão) penetrar no drama da existência humana, atravessá-lo até seu último fundo, para encontrar a “ovelha perdida”, colocá-la nos seus ombros e levá-la para casa... Especialmente a Epístola aos Hebreus enfatizou que pertence à missão de Jesus, à sua solidariedade conosco antecipadamente representada no batismo, não se negar às ameaças e aos riscos da condição humana: “Por isso que em tudo se tornasse semelhante aos irmãos, para ser em relação a Deus, sumo sacerdote misericordioso e fiel, para expiar assim os pecados do povo. Pois, tendo ele mesmo sofrido pela provação, é capaz de socorrer os que são provados.” (Hb 2,17s) “Porque não temos um sumo sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo, como nós, com exceção do pecado.” (Hb 4,15) A história das tentações mantém assim uma estreita relação com a história do batismo, na qual Jesus se solidariza com os pecadores. Próximo dela está a agonia no jardim das Oliveiras como a outra grande luta de Jesus motivada pela sua missão. Mas, as “tentações” acompanham todo o caminho de Jesus, e assim a história das tentações aparece – de modo semelhante ao batismo – como uma antecipação na qual se condensa a luta de todo o caminho.» (Ratzinger,  2007.)
Na Carta aos Romanos (cf. Rm 5,12-19) o Apóstolo Paulo afirma que: “como pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores, assim, pela obediência de um só, todos se tornarão justos.” (Rm 5,19) Não interpretamos este texto como se ele se referisse ao “pecado original”, pois o conceito e a doutrina sobre o “pecado original” só aparecerão no cristianismo do terceiro século. No entanto, para São Paulo, o pecado é sempre isso: “desobediência a Deus”. O que aqui nos disse São Paulo é que pela desobediência de nossos primeiros pais biológicos a morte “inaugurou seu reinado” no mundo, posto que, antes, no paraíso, Adão e Eva não estavam submetidos à lei da morte. E, pela obediência de Cristo, Deus nos perdoa o pecado e alcança-nos a justiça e salvação. Mas, o tema é complicado e difícil de explicar neste exíguo espaço, muito se tem escrito sobre isto. A nós, nos basta saber que na obediência e no cumprimento da vontade de Deus está a salvação.
No entanto, não é fácil aceitar em nossas vidas a vontade de Deus, sobretudo quando as coisas vão mal. Mesmo para Jesus não foi fácil, lhe custou suor e sangue. Nada diferenciava Jesus de qualquer outro homem e mulher de qualquer tempo: era tentado. Diante disso, temos que clarear uma coisa simples, mas nem sempre bem entendida. A tentação não é pecado. Ser tentado não é pecar. Santo Agostinho nos ensina que a “nossa vida, enquanto somos peregrinos neste mundo, não pode estar livre de tentações, pois é através delas que se realiza nosso progresso e ninguém pode conhecer-se a si mesmo sem ter sido tentado. Ninguém pode vencer sem ter combatido, nem pode combater se não tiver inimigo e tentações. (Liturgia das Horas, vol. II, Ofício das leituras do 1º Domingo da Quaresma)
Ainda que, às vezes, somos nós mesmos que alargamos as tentações por não ter uma resposta clara e imediata às mesmas. Alguns confundem tentações com os desejos próprios dos instintos, prescindindo do Tentador, do demônio. E, sem dúvida, existem propostas de fazer ou não fazer, ou dedicar-se ou não a algo, baseados em um engano manifesto, mas bem tramado. O demônio é o pai da mentira. E tentação sem engano, sem mentira, não é tentação. Intenta, sobretudo, enganar. Não dar algo em troca. Só enganar. Mas, não se trata de fazer aqui um tratado antropológico, com vislumbres de ciência psicológica, sobre desejos e tentações. Porque a realidade é que, todos, absolutamente todos, terminamos sabendo que estamos ante enganos bem traçados, ante tentações que chegam de fora.
Jesus foi tentado e nos ensina a superar a tentação. A experiência do deserto nos mostra a evidência da fragilidade de nossa vida e de nossa fé. O deserto é carência e prova, nos mostra a realidade de nossa pobreza e fragilidade. Por isso temos medo de entrar em nosso interior, sentimos pavor ante o silêncio. Surge a tentação, a prova...
As tentações propostas pelo diabo a Jesus contêm, sobretudo, não a busca de um pecado, de uma transgressão moral, senão, simplesmente, tirá-lo do caminho da obediência à vontade do Pai que ele havia traçado. Busca o tentador que Jesus dominado por dúvidas, queira confirmar aquilo sobre o qual não estaria seguro. Como, por exemplo, ser o Filho de Deus. O que fica claro é que, desde o episódio do deserto, o diabo irá se opor à missão de Jesus. “O núcleo de toda tentação – isso se torna visível aqui – é colocar Deus de lado, o qual, junto às questões urgentes da nossa vida, aparece como algo secundário, se não mesmo de supérfluo e incômodo. Ordenar; construir o mundo de um modo autônomo, sem Deus; reconhecer como realidade apenas as realidades políticas e materiais e deixar de lado Deus, tendo-o como uma ilusão: aqui está a tentação que de muitas formas hoje nos ameaça.” (Ibid. Ratzinger, 2007.)
Jesus nos mostra que é possível viver superando as tentações, sem perder nossa dignidade e nossa condição de filhos e filhas de Deus, e buscando em todo momento fazer a sua vontade, como rezamos no Pai nosso. Mas há uma coisa importante, é que para superar as tentações é mister saber quais são elas. Quais as tentações que nós cristãos temos hoje? O Evangelho nos mostra três tentações de Jesus que se podem transladar para nós.
Na primeira tentação, o demônio disse a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães.” (Mt 4,3) Nossa tentação poderia ser fazer da satisfação das necessidades materiais o objetivo último e absoluto de nossa vida. Pensar que a felicidade última do ser humano se encontra na posse e no desfrutar dos bens. Mas Jesus nos disse que isso não é suficiente, que os valores que Ele nos propõe são: compartilhar, não possuir egoisticamente só para si; dar, não acumular; criar vida e viver como irmãos, não explorar aos outros como se não tivessem dignidade.
Na segunda tentação, o demônio disse a Jesus: “Se és Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra.” (cf. Mt 4, 5-7) Nossa tentação poderia ser buscar o poder, o êxito ou o prestígio pessoal, por cima de tudo e a qualquer preço, inclusive caindo nas idolatrias mais ridículas. Mas, Jesus nos disse que frente ao próprio prestigio e poder, frente à competência e a rivalidade com os outros, está o serviço generoso e desinteressado aos irmãos.
Finalmente, na terceira tentação, o demônio disse a Jesus: “Tudo isso te darei, se, prostrado, me adorares”. (cf. Mt 4,8-10) E creio que aqui tropeçamos bastante, porque nossa tentação é utilizar a Deus de maneira mágica e egoísta, tratando de que ele nos resolva os problemas da vida, manipulando Deus a serviço de nossos interesses, sem nenhuma luta nem esforço de nossa parte. Pedimos-lhe, lhe prometemos, lhe invocamos… mas nosso compromisso não se vê. Jesus nos disse que essa não é a verdadeira fé, uma fé passiva, acomodada, sem ação nem compromisso transformador ante os problemas e as dificuldades da vida. O contrário, o que é fiel a Deus e vive como seu Filho, cumpre sempre sua vontade, se arrisca e se compromete cada dia na luta por conseguir um mundo mais digno e justo para todas as pessoas.
Este “primeiro domingo do itinerário quaresmal evidencia a nossa condição de homens nesta terra. O combate vitorioso contra as tentações, que dá início à missão de Jesus, é um convite a tomar consciência da própria fragilidade para acolher a Graça que liberta do pecado e infunde nova força em Cristo... É uma clara chamada a recordar como a fé cristã implica, a exemplo de Jesus e em união com Ele, uma luta «contra os dominadores deste mundo tenebroso» (Ef 6, 12), no qual o diabo é ativo e não se cansa, nem sequer hoje, de tentar o homem que deseja aproximar-se do Senhor: Cristo disso sai vitorioso, para abrir também o nosso coração à esperança e guiar-nos na vitória às seduções do mal.”  (Bento XVI, Mensagem para a Quaresma 2011)


Bibliografia
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
Ratzinger, Joseph. Jesus de Nazaré. São Paulo, Editora Planeta, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário