domingo, fevereiro 20, 2011

A medida do amor é o amor sem medida

Padre Assis
Pároco de Fátima

Continuamos escutando no evangelho de Mateus a aplicação das bem-aventuranças à vida da comunidade cristã. No evangelho de hoje (cf. Mt 5, 38-48) devemos refletir sobre a forma mais radical da vivência do amor: perdoar e amar o inimigo. Com isso seguimos falando da plenitude da lei, da lei que, segundo Jesus, os escribas e fariseus não cumpriam em plenitude.
Nas três leituras da Liturgia da Palavra deste Domingo há um chamado à santidade e à perfeição: “Sede santos, porque eu, Iahweh vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). Esse chamado contrasta com o estar submetido à nossa condição de seres humanos, imperfeitos, limitados, frágeis e propensos ao erro. Mas, Deus conhece muito bem a nossa frágil natureza, porque se encarnou, nascendo um de nós e segue nos chamando à perfeição no amor, a viver o amor como ele o viveu. Porque só o amor vivido assim, ao seu estilo, fará possível nossa santidade.
“Amor” e “perdão” são por assim dizer, duas palavras chaves na mensagem deste domingo. Fáceis de pronunciar, mas difíceis de praticar. Amar aos que nos amam pode ser interessante. O mérito, no entanto, está em amar aquele que não nos pode devolver o amor, e inclusive aquele que nos prejudica ou que nos odeia. O Levítico, uma espécie da manual de prescrições sobre o culto, destinado em primeiro lugar ao sacerdócio no cumprimento de suas funções e em segundo lugar ao povo de Israel, é um ensinamento sobre a santidade. Santidade que é aqui não um conceito de Deus em si, mas uma exigência radical do próprio mundo para ser aquilo que é chamado a ser e ás pessoas nos diversos âmbitos da vida.
O caminho da santidade passa pelo amor ao próximo: “Não terás no teu coração ódio pelo teu irmão... Não te vingarás e não guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. (Lv 19,17-18) O amor a Deus e ao próximo não se improvisa. É um amor que nasce de uma experiência religiosa, uma experiência existencial profunda que dá sentido a toda nossa vida. Para o povo de Israel, essa experiência foi a de sentir-se como povo libertado da escravidão. Ele descobriu um Deus preocupado com sua vida e seus sofrimentos. Descobriu um Deus que se lhes deu a conhecer libertando-o da escravidão do Egito. Descobriu o Deus da liberdade e do amor. Anos mais tarde, essa experiência religiosa “esfriou”, e se “escondeu” esse Deus de amor e da liberdade debaixo de um montão de normas que tornavam a vida mais difícil, em vez do contrário. Então chegou Jesus, e começou a “desvelar” o Deus do amor e da liberdade que estava na origem da experiência religiosa daquele povo. E ele mesmo se converteu em experiência de amor e de libertação para quantos lhe seguiram, desde então até hoje.
O apóstolo Paulo escreve aos primeiros cristãos de Corinto que Deus quer viver em nós: “Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” (1Cor 3,16) O templo não é sagrado pela riqueza arquitetônica de suas linhas, ou pela suntuosidade interior e exterior que apresenta. O templo é sagrado porque é a casa visível onde Deus se manifesta. Se nós somos templos de Deus, devemos apresentar-nos aos outros, como pessoas nas quais Deus habita e se manifesta assim a perfeita comunhão de vida e do amor de Deus. Se soubermos esvaziar-nos de nosso eu vaidoso e egocêntrico, Deus poderá manifestar-se em nós como um Deus Amor, como o Deus de Jesus Cristo. Assim cada um de nós será um templo vivo, porque o Espírito de Deus habitará em nós.
No evangelho de hoje (Cf. Mt 5, 38-48) lêem-se as duas últimas antíteses do sermão da montanha. A primeira antítese de Jesus faz referência à chamada lei do Talião, tal como está escrita no livro do Êxodo, 21, 25: “olho por olho e dente por dente”. A lei do Talião era considerada pelos judeus como uma lei sagrada, dada por Moisés ao seu povo, para impedir a vingança desproporcionada e indiscriminada. Em seu tempo, foi uma lei boa e necessária. Mas Jesus de Nazaré pede a seus discípulos que eles vão mais além: “àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda” (Mt 5,39). Eu não sei se nós, em nosso comportamento diário, somos mais partidários da lei do Talião, que do conselho de Jesus. Porém, o que se sabe é que a plenitude do perdão, segundo o mandamento de Jesus, nos obriga a não devolver o mal com o mal, mas vencer o mal com o bem. Cristo nos abre uma nova perspectiva. Ele considera que temos que descartar todo desejo de vingança ou de justa compensação por um dano sofrido. Segundo a doutrina evangélica, não tem que se enfrentar a quem nos prejudica, não tem que devolver mal por mal. Ainda que isso seja o normal, e inclusive podemos dizer que é o natural. É evidente que existem os tribunais de justiça, e que também os cristãos temos direito a fazer uso deles quando o acreditamos justo e conveniente. Porém, na convivência de cada dia devemos esforçar-nos em parecer e em ser sempre mansos e humildes de coração.
A segunda antítese de Jesus se refere ao amor aos inimigos: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5, 44). É possível amar os inimigos? Afetivamente, quase nunca é possível, porém o que nos manda Cristo não é que amemos afetivamente aos inimigos, mas que façamos o bem e rezemos por eles. Isto não só é possível fazê-lo, como o fazendo nos sentiremos certamente muito melhor. Amar a uma pessoa significa então fazer-lhe o bem, e nos disse Jesus que se fizermos isto atuaremos como verdadeiros filhos e filhas de Deus: “Desse modo vos tornarei filhos do vosso Pai que está nos Céus, por que ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5, 45). Jesus quer que nos pareçamos mais com nosso Pai Deus: “Deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48). E se ele não distingue entre bons e maus na hora de mandar a chuva ou de fazer sair o sol, tampouco nós que somos seus filhos podemos deixar-nos levar por critérios meramente humanos. Temos de lutar por ser perfeitos.
Amar a uma pessoa na medida com a qual ela nos ama, é relativamente fácil; amar a uma pessoa para além da medida com a qual ela nos ama, é difícil: “se amais aos que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem também os publicanos a mesma coisa?” (Mt 5,46). Isso é amar sem medida, amar com a medida de Deus. Muitas pessoas dizem: eu perdôo, mas não esqueço. Pois se perdoa em sentido cristão, já é o suficiente. Esquecer sabe-se psicologicamente é impossível e ninguém nos vai exigir. Essa é a paz da consciência que nos deve dar a religião, ante as injurias, os insultos e os danos não merecidos. O perdão é a cara humilde do amor; o que sabe perdoar sabe amar.
“A radicalidade da mensagem evangélica deste domingo coloca sérias interrogações: Este programa é realizável ou é uma simples utopia para sonhadores? A resposta de muitos é: impossível, inalcançável ou é demasiado sublime. É certo que, vistos à luz da sabedoria deste mundo, tais conselhos de Jesus podem parecer-nos utopia ingênua e irrealizável, um programa para sonhadores ou para tontos. Claro está que Cristo manda afastar de nós qualquer sentimento de ódio, rancor, maus desejos, fanatismo e intolerância; mas praticar o desarme unilateral, dar a outra face e amar os inimigos!... Isso é demais, parece comportamento de gente sem juízo e de resignados fatalistas. Quanto muito, um ofendido poderá chegar a perdoar. Esquecer já poderá custar mais. Amar o agressor parece impossível... Contudo, historicamente sabemos que houve cristãos que deram uma resposta afirmativa; e não eram inconscientes nem covardes, mas heróis em santidade, homens e mulheres de grande coração e de maturidade humana e cristã inigualável... Conscientemente, Jesus excluiu toda a violência e ódio, mas não uma resistência pacífica, ainda que ativa, pelo amor. Ele mesmo a praticou no processo da sua paixão, pedindo uma explicação da bofetada injusta no tribunal de Anás. Não se aprova qualquer silêncio perante a irracionalidade e a injustiça. Essa atitude covarde faria muitos mártires, é certo; mas também travaria o processo de humanização e, em muitos casos, silenciaria a voz dos pobres sem voz. (Caballero, 2001.)
Na nossa história mais recente temos vários testemunhos da “não-violência ativa”: Gandhi, Martin Luter King, D. Helder Câmara e tantos outros como D. José Maria Pires, arcebispo emérito da Paraíba, que apresenta a não-violência, tal como ele a entendeu e a procurou praticar com firmeza justificando assim, sua opção na luta pelos direitos humanos: “Para nós, a Não-Violência é uma disposição do coração para acolher o homem qualquer que ele seja, aonde quer que ele se apresente e não importa com que roupagem cultural. A Não-Violência exige uma constante vigilância no próprio comportamento e procurar eliminar suas raízes, exige uma contínua conversão do coração, e um decidido esforço da mente para distinguir no opressor o mal que ele faz e a pessoa que ele é; para conseguir amar o homem e detestar o erro segundo a norma da sabedoria cristã ditada por Agostinho. Nesse detestar o erro as armas empregadas não são as da força, as do poder, da lógica ou da dialética. Jamais ferir o outro com uma arma! Jamais agredi-lo com a ironia ou com a publicação do que sua vida pública ou particular possa ter de humilhante! Mais ajudá-lo a querer ser razoável e procurar sensibilizar-lhe o coração. Essa atitude não só a consideramos mais evangélica como também mais eficaz politicamente. Politicamente, o poder econômico tem investido grandes somas para eliminar seus opositores. Mas ele não sabe ainda como enfrentar homens e mulheres unidos, desarmados e não-violentos... Cada não-violento que é preso, ferido ou morto é uma interpelação séria feita ao autor da prisão, do espancamento ou da morte; um libelo a acusá-lo de covarde. E é um apelo de amor para que ele se converta”. (Pires, 1978.)    
Hoje, como ontem, fazem falta testemunhos, assim contagiosos de amor ao “inimigo”, defensores valentes dos direitos humanos, mesmo que isso lhes custasse a vida. Perdoar e amar, é a grande força ativa do não-violento, a única opção capaz de travar e destruir a espiral do mal e da violência. Jesus, pois, nos oferece o perfil do seu discípulo, formado pela Não-violência ativa do amor e pelo testemunho daquele que morreu perdoando a amando até o fim.

Bibliografia:
Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
Caballero, B. A Palavra de Cada Domingo, Ano A. Apelação (Portugal), Paulus, 2001.
Pires, D. José Maria. Do Centro para a Margem. João Pessoa (PB), Editora Acauã, 1978. 

Um comentário:

  1. GOSTEI MUITO DESSE TEXTO SOBRE O VERDADEIRO AMOR SEM MEDIDAS... PARABÉNS AO NOSSO PADRE ASSIS PELO SEU TRABALHO DESENVOLVIDO NA PARÓQUIA DE FÁTIMA.

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