A leitura semi-contínua
nestes domingos comuns da liturgia no ano do evangelho de São Mateus, é uma
ocasião de ouro para que a comunidade cristã, reunida para o culto cristão,
possa aprofundar-se nos valores de Jesus e vivê-los pessoal e comunitariamente
compartilhando-os à sua volta para ajudar a construir o que D. Pedro
Casaldaliga (bispo emérito de São Felix do Araguaia) definiu como a
“altermundialidade”, essa nova sociedade ou outro mundo possível onde
resplandeçam a liberdade, a igualdade, a abertura ao outro, o amor solidário e
a auteridade solidária. Essa nova sociedade na qual se realizem plenamente os
direitos da pessoa humana.
Neste momento
histórico de vazio de valores, tanto os seguidores e seguidoras de Jesus, como
toda pessoa crente ou não tem uma referência de valores nas palavras e ações de
Jesus de Nazaré para preencher esse vazio. Os cristãos têm que ter coragem para
apresentar em nossa sociedade os valores de Jesus em toda a sua riqueza e força
revolucionariamente transformadora, e com os crentes e não crentes ir
construindo as colunas deste mundo novo.
O livro do
Eclesiástico ou Sirácida, que a Igreja o reconhece como canônico, cujo autor
viveu no meio do século III a.C. une o amor da sabedoria ao amor da lei e fala
que o ser humano é livre para decidir seu destino, para escolher entre o bem e
o mal, uma velha opção, uma luta antiga de toda a vida: “Diante dos homens está
a vida e a morte, ser-te-á dado o que preferires.” (Eclo
15, 17) O autor ensina que esta liberdade se
expressa em sua maior decisão ante a vida e a morte. Dois valores que alcançam
a pessoa em sua intimidade e em seu destino. A liberdade é um dom, mas é também
um valor em cujo exercício se corre riscos. Hoje como ontem é necessário que os
homens e mulheres reconheçam este dom que a natureza nos concede.
O Apóstolo Paulo,
na Primeira Carta aos Coríntios, ensina onde está a verdadeira liberdade. Está na
sabedoria em saber discernir e escolher a vida e não a morte, a felicidade e
não o vazio existencial. Utilizando uma linguagem muito singular, Paulo afirma
que “o Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus” (1Cor
2,10) e é quem conduz o ser humano a saborear a verdadeira sabedoria
que transcende os limites onde a pessoa desenvolve seus conhecimentos. O
Espírito também é entendido como o animador da vida moral.
Esta liberdade e
sabedoria a vemos na postura critica de Jesus à lei mosaica (o decálogo) e no
seu ensinamento a seus seguidores no chamado sermão da montanha (cps.
5,6 e7) do evangelho escrito por Mateus. “Perante
a lei, como podemos verificar nos nossos dias, adotam-se facilmente duas
atitudes distintas: de apego à mentalidade total de tudo quanto a lei parece
decretar, e de omissão e quase desprezo por ela. Nas primitivas comunidades
cristãs ocorre algo parecido. Para resolver o problema que tais atitudes
suscitavam, procurou-se, logicamente, descobrir a atitude que Jesus adotara
perante a lei. Os seus ensinamentos eram tão novos e radicais que dava a
impressão de que prescindia e até desprezava a lei. Em vez de falar de
divergências relativamente à normativa bíblico-judaica, falaria do seu
aperfeiçoamento: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim
revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento...” (Mt 5, 17) Mas é possível
reduzir a lei a árdua casuística, como faziam os fariseus, tergiversando e
defraudando a própria lei. Isto era não compreender a lei. A lei, como
expressão da vontade de Deus, deve ser
aceita na sua totalidade. Quem assim a entender, é mais justo que aqueles
“justos” da época de Cristo, os teólogos (os escribas) e os leigos piedosos (os
fariseus): a sua justiça supera a dos escribas e fariseus”. (Comentário
à Bíblia Litúrgica)
evangelista põe na boca de Jesus ensinamentos profundos e atuais, exigência radical quase impossível: “Se a vossa justiça não ultrapassar a dos escribas e dos fariseus, o entrareis no Reino dos Céus.” (Mt 5,20) Teríamos nós, nos convertido nos novos fariseus? Com leis e normas que em lugar de ajudar-nos a crescer e a viver felizes, nos colocam longe do projeto de Deus. Jesus não queria que o grupo de seus discípulos e discípulas se tornasse uma seita fechada de “puros” como os fariseus muito bem intencionados, porém enganados a si mesmos e enganando os outros, com sua falsa moral, vivendo a lei apenas no seu aspecto exterior, pois a plenitude da lei exige mais. Não basta sermos uns fariseus mais fariseus. Como cumprir a lei literalmente melhor que os mestres da lei e fariseus? Segundo Jesus os letrados e fariseus não cumpriam a lei por amor e com amor, e sim por motivos egoístas e interesseiros. Jesus não despreza a lei, mas quer que como ele nós a cumpramos em plenitude.
A plenitude da lei não está no cumprimento literal, mas em sermos fiéis ao espírito da lei. Jesus ama a lei, mas não é legalista. Sabe que a lei tem letra e espírito; “a letra mata e o espírito vivifica”, ater-se exclusivamente à letra da lei pode matar o seu espírito. Cumprir a lei atendo-nos ao seu espírito é cumpri-la em sua plenitude. Sabemos também que o mandamento de Cristo, sobre o qual se sustentam todos os outros mandamentos é o mandamento do amor a Deus e ao próximo.
Depois de afirmar este princípio fundamental Jesus põe o exemplo de quatro mandamentos que todo
judeu sabia de cor (não matar, não cometer adultério, não perjurar) e propõe suas antíteses: “Ouvistes o que foi dito... Eu, porém vos digo...” (cf.Mt 5, 21-37) Jesus não nega a validade desta lei, porém disse que para cumpri-la tem que ir muito mais além do que essas leis dizem
literalmente.
O mandamento de não matar só se cumpre em plenitude, quando amarmos o próximo, inclusive o que nos tem ofendido e lhe perdoarmos de coração. Há entre nós quem diz no confessionário: “Eu sou bom porque não mato, nem faço nada de mal”; mas Jesus
nos disse que isto não é suficiente, porque há outras formas de se matar. Podemos matar as ilusões dos outros, podemos anular o outro ou deixá-lo marginalizado, podemos lhe guardar um terrível rancor; e tudo isso é também matar, não com uma morte física, mas sim com uma morte moral e espiritual. O Senhor nos chama a ser pessoas consequentes, a tratar os outros com respeito, com amor, como irmãos: “se estiveres para trazer a tua oferta ao altar e ali te lembrares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa tua oferta ali diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e depois virás apresentar tua oferta. Assume logo uma atitude conciliadora com o teu adversário...” (Mt 5, 23-25) Isso quer dizer, que a fé que professamos quando celebramos a Liturgia deveria influir em nossa vida cotidiana e afetar nossa profundamente nossa conduta. Nada de a fé e o culto estarem desligados da vida. O
mandamento de não cometer adultério não se refere unicamente ao ato físico-sexual. A lei “aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe uma carta de divórcio” (Mt 5,31), interpretada literalmente deixa a mulher em inferioridade legal frente ao homem, a plenitude desta lei exige que seja o amor o que regula as relações entre os esposos. “O direito matrimonial judeu
defendia o casamento entre dois judeus punindo com a pena de morte qualquer relação de um homem com a esposa ou noiva de outro judeu. Mas os direitos do homem e da mulher eram diferentes. Um judeu casado podia manter relações com uma mulher solteira ou com uma pagã e isso era considerado prostituição, não era considerado realmente como adultério. Mas a esposa judia era adúltera se tivesse qualquer relação sexual fora de seu casamento. O comentário de Jesus ao sexto mandamento do decálogo eleva a dignidade humana da mulher. “Todo aquele
que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração.” (Mt 5,28) (Bouzon,1978.)
Mateus põe em relevo o desejo de Jesus de dignificar a mulher. Entre os judeus a mulher era apenas uma “coisa”. Através da história e durante muito tempo apenas tem sido mais que uma coisa. A divisão da humanidade em homens e mulheres tem dado uma terrível consequência: a maldosa discriminação da mulher. O cristão tem diante de si outro desafio posto por Jesus: o de nas relações com a mulher considerá-la como pessoa com a qual compartilha um projeto de vida, o de dar uma esplêndida lição ao mundo, mostrar que maravilha são capazes de construir dois seres diferentes e que se consideram iguais porque vivem fundados em Cristo.
Portanto o evangelho aborda a questão das relações de gênero transformadas por palavra e
ação pela igualdade de direitos e pelo amor que dá vida e é respeitoso com a
pessoa. Jesus foi um pioneiro em sua sociedade no trato com a mulher e deseja
que seus discípulos e discípulas sigam seus passos. A sociedade machista, a
violência contra a mulher e a desigualdade de gênero devem ser abolidas entre
os cristãos. Como é importante este evangelho para melhorar as relações dentro da
sociedade e na própria Igreja.
Creio que chegou
o momento de chamar as coisas pelos nomes, não como insulto pessoal, mas com a
denominação que o próprio Jesus dá. Trata-se do assunto espinhoso do adultério que
deve ser tratado com caridade pastoral, mas que é preciso assumir uma postura
moral, não farisaica, mas justa. Esses homens e mulheres que desfilam no “hight
society” ou em tantas revistas de fofocas falando dos seus tantos casamentos e
descasamentos temos que chamá-los de “adúlteros”. Talvez para eles e elas isso nem
tenha tanta importância, mas, para nós cristãos deveria importar muito, pois
assim é como o Senhor os chamaria. Sejam elas ou eles grandes personalidades do
mundo empresarial, do mundo artístico, do mundo político... Quando uma mulher
ou um homem trocam de parceiros como quem troca de roupa são adúlteros diante
de Deus e Jesus foi muito claro ante esta questão. Vivemos hoje em nosso pais a
cultura do chamado “divórcio express” da nossa legislação, que facilita
rapidamente as separações mas que evita qualquer possibilidade de
reconciliação, parecido com o “libelo” ou “carta de divórcio” entre os judeus
do tempo de Jesus, que ele criticou
Sabemos que
existem pessoas que se casaram inconscientemente, sem a compreensão do amor
exigente para a conjugalidade ou sem maturidade; questões essas que podem
viciar o matrimônio tornando-o nulo na raiz. E isso a Igreja compreende e os
considera reconhecendo como casos de nulidade matrimonial não fazendo mais que
declarar que nunca houve matrimônio nesta ou naquela situação concreta. Não é
que a Igreja anule o matrimônio, apenas declara aquilo que nunca foi.
Deste modo,
“nestas questões de relacionamento e amor conjugal não basta salvar as
aparências, é preciso que as ações dos discípulos de Cristo se inspirem na
pureza de coração. Esta atitude exige o correto uso da sexualidade no
relacionamento com o próximo e, por vezes, a renuncia radical de si mesmo.” (Bechäuser,
2003.)
Jesus conclui o
seu comentário à lei falando sobre a verdade: “Não jure em hipótese nenhuma...
Seja o vosso ‘sim’, sim, e o vosso ‘não’, não”. (cf. Mt 5,
34-37) O cristão é chamado a ser verdadeiro, transparente
e simples, vivendo de tal modo a verdade que não precise jurar.
Enfim podemos
afirmar que Jesus quer dar cumprimento verdadeiro à lei, quer desvelar o
verdadeiro significado. Todos os mandamentos estão traspassados pelo amor. Que o
nosso cumprimento da lei seja a expressão do nosso amor a Deus e ao próximo,
tendo como raiz a liberdade dos filhos e filhas de Deus.
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