sexta-feira, fevereiro 18, 2011

DA FRIEZA DA LEI AO CALOR DA CARIDADE

Diácono Bruno


Em nossa liturgia, rezamos a seguinte causa: Mais vale um ato de caridade que uma lista de preceitos morais. Preferível o calor das ações de caridade, que a frieza da lei difícil e humanamente impraticável.
Vejamos um caso bem conhecido nosso!
Dona Nevinha, é uma senhora muito católica, já em seus 70 anos de idade, padece das seqüelas de um AVC. Sem reações em todo lado esquerdo de seu corpo, puxa com a mão direita a esquerda que não reage a estímulo nenhum. Havia uma vizinha, muito prestativa e atenciosa que todas as manhãs não deixava de cercar a Dona Nevinha daqueles cuidados básicos, como trocar a roupa de cama, lençóis, fronhas, etc..., varrer a casa e cuidar para que o ambiente de Dona Nevinha ficasse relativamente organizado e com odor agradável, assim como aquele que exalava de seu quintal repleto de rosas e jasmins.
A vizinha generosa, sempre retirava do quintal um botão daquelas rosas e colocava em uma jarra com água sob um criado mudo, para lembrar a Dona Nevinha que Deus toca os nossos sentidos, e inspira-nos em nossa razão a louvá-Lo e agradecer, pois não existe oração melhor que reconhecermos o autor de toda história e toda criação, “simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de Ti”, nos diz o poeta.
Nossa enfermidade, quando tocada por tão grande mistério, torna-se uma fagulha diante da fornalha ardente de amor, que abraça a nossa dor com a misericórdia da paixão do Senhor, realizando-se em nós aquilo que nos disse o apóstolo Paulo: “Agora regozijo-me nos meus sofrimentos por vós, e completo o que falta às tribulações de Cristo em minha carne pelo seu Corpo, que é a Igreja”. (Cf. Col, 1 24). Ah! Essa vizinha caridosa não tem um nome e pode ser identificada como aquele bom samaritano, que também não tem nome e pode ser tanto o Cristo que passa fazendo bem, ou cada um de nós que é convidado a fazer o mesmo que Cristo fez, ou seja, lavar os pés do outro, suas feridas, reconhecendo a chave que abre o mundo novo e o Reino dos céus já na terra, que chave é está? Reconhecer Cristo presente no meu irmão! No calor da caridade, o menos importante é o fato de ser de religião diferente, o que importa é que Deus tem um caminho de metas a cumprir-se em nossas vidas, um projeto, esse caminho de metas, chama-se na linguagem grega de métodos, μέθοδος: um caminho de metas, caminho organizado que nos conduz para o além da situação fechada, limitada, digamos que o nosso “métodos” é Jesus, Ele mesmo é o met, μεθ, o ideal, para onde caminhamos. Assim entendemos que Jesus sempre nos conduz através do rodos,  caminho da Verdade e da Vida em sua própria pessoa, para o Pai no Espírito Santo.
Com isso, Jesus nos propõe um novo método, comunicando-nos a Boa Nova do Reino de seu Pai, numa proposta de amor, ensina-nos a linguagem dos pequeninos: “eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11, 25), totalmente distinta da linguagem dos grandiosos conhecedores e doutores da Lei. Então, quem são esses doutores da Lei? São todos aqueles que regiam e administravam o culto antigo e auxiliavam os imperadores forçando-os a executar as punições para não mancharem suas mãos de sangue! “Hipócritas, sepulcros caiados!” Replica Jesus, a estes Senhores executivos externos da lei, mas sem pouca clemência, justiça, misericórdia e nenhuma fé (Cf. Mt 9, 13; 12, 7), a não ser na arrogância dos seus argumentos de valores pré-conceituosos, ou seja, o pré-conhecimento da pessoa! Essa é a questão fundamental da lei não encarnada, apreendida externamente e distante da pessoa. Para São Paulo, na comunidade dos gálatas ele escreve: “que esta lei era justa para homens injustos afim de mostrar-lhes o pecado, mas não para tirá-lo”. Santo Agostinho, no século IV complementa: “Nada, com efeito, apaga o pecado a não ser a graça da fé que age pela caridade”.[i] Por isso que Deus se encarnou, para nos salvar e salvando-nos garantir a vida eterna, por isso Deus se encarnou para revelar-nos que a caridade é a entrega livre de uma pessoa que veio para libertar-nos do pecado do egoísmo, seria prepotência demais compreender que somos capazes, de per si, fazer o bem, se não houvesse um feixe da luz divina, a refletir em nosso proceder, mesmo quando erramos. Existe uma estrofe de um canto da nossa Igreja musicado por Pe. Zezinho que diz o seguinte: “Se temos algum bem virtude ou dom não vem de nós vem do teu favor, pois que sem Ti ninguém, ninguém pode ser bom, só Tu podes criar a vida interior”.
Assim, estimados irmão e irmãs, Deus age! E não é reduzido por meus pecados, ou os sinais sacramentais seriam influenciáveis pelos limites humanos. Uma antiga heresia, presente no século IV, dita pelos Donatistas, repudiada por Santo Agostinho, dizia que os sacramentos, especificamente a Eucaristia era inválida se o ministro estivesse em pecado grave, como se a validade estivesse apenas na dimensão externa e formal! Ora, Agostinho formula nosso depósito da fé, afirmando a incapacidade da ação humana em reduzir a graça divina, pois o ministro age na pessoa de Cristo, as palavras não são suas, mas de Cristo. E assim resolve essa questão!
Existem seitas envolvidas com a teologia da prosperidade, que repetem as mesmas heresias de Donato, quando oferecem a salvação primeiramente pelas coisas externas, geralmente iniciadas pela letra “C”: casa, computador, celular, cartão de crédito, compras, consumir, e por último o céu, mas em meio a tantas ofertas, o céu já está liquidado, realmente! E Jesus realiza uma grande oferta, a da sua própria vida! Quem aceita? É muito fácil aceitar o céu com uma cobertura em um edifício qualquer! Vejamos se nossas intenções estão aqui, ou ali, na entrega da própria vida, realizando uma íntima relação das nossas intenções com a prática do amor doando, não só no pouquinho de nós, mas a vida inteira!
Iremos encontrar em Mateus, expressões desse tipo: “em verdade vos digo”, ou seja, corresponde também em sua origem ao nosso amém, demonstrando a firmeza de suas palavras, imbuídas de um Espírito da verdade, da fidelidade, ou um simplesmente, “de fato”. “Não será omitido nem um só i, ou uma só vírgula, “nem um iota, nem um risquinho”. Se isso acontece com a dimensão das letras, imaginem com a dimensão da vida, da própria vida nossa, assim com a do próprio Jesus em sua Páscoa, em sua paixão... O que quer dizer o “ sem que tudo seja realizado”? Realmente que o princípio e o fim é Jesus, sua morte e morte de Cruz, sua ressurreição e a salvação do mundo.
E como Jesus realiza isso? Fazendo aquilo que agora estamos fazendo, contando história e contando a história da salvação, completa, a história da humanidade!  Vejamos como este Evangelho de Jesus Cristo, segundo Mateus, nos ajuda a retirar um Raio X de sua pessoa e não apenas uma mera fotografia, vamos portanto nos apropriando das declarações de Deus amor por nós, isso se chama revelação. O Nosso mundo nos diz Bento VI, “precisa apreender o esplendor divino da Criação, através de uma abertura interior para além do visível e mensurável, ou Deus permanecerá excluído da nossa vista” [2].
A infinita presença, presente em nós por meio de seu Espírito é luz das Nações, tempo que se desenvolve dentro do eterno, tornando o palco do mundo, “lugar” em que se desvela o sentimento do coração de Deus, em uma pessoa, no mistério revelado da pessoa de Jesus. Que aprofunda cada preceito, libertando-nos da aridez da Lei, ensinando-nos a não apenas “não matar”, mas reconhecer no irmão e irmã um rastro de céu aqui na terra, e se esta terra é o suporte onde Deus apóia seus pés, foi aqui nesta morada terrestre que o Cristo apoiou a haste pela qual foi elevado, dando dignidade de Filhos de Deus a todos nós, logo, o Reino passa por mim e o amor de Deus pelas minhas mãos quando tocam realidades marginalizadas.
Jesus nos instrui a não apenas não cometer adultério, mas a viver a castidade, ou seja, uma sobriedade dos nossos sentidos externos e internos, pensamentos e palavras. A graça envolve as potencialidades da nossa alma: vontade, memória e inteligência, três dimensões em uma só, a salvação é a unidade dessas três dimensões na unidade da alma, convertidos em um ser amado e por ser amado curado, agora com uma potencialidade divina, qual? A de amar! Que consiste em contemplar a pessoa de maneira integral. Todo olhar envolto de cobiça, inveja, não fez um verdadeiro caminho interior, não viajou pela via alma, da mente e do coração, se perdeu e precisa do auxílio do Justo Juiz, que nos conhece mais que a nós mesmos. Esses nossos pré-juizos nos matam, Jesus nos diz: “se o teu olho, tua mão, ou qualquer membro do corpo te leva a pecar, corta-os! É melhor perder um dos teus membros do que todo o corpo e ir para o inferno! Seja vosso sim, sim e vosso não, não, fora disto não provém de Deus.
Sejamos misericordiosos, Deus não garante para nós uma eternidade aqui na terra, se fosse assim seriamos como o mito das três graias, que pediram para viver eternamente, mas esqueceram de pedir para não envelhecer, utilizaram apenas a vontade sem memória e inteligência, o que aconteceu? Não precisaram cortar a mão ou olho, pois eram tão velhas que as três só tinham um olho e um dente e partilhavam entre si para poder comer e enxergar, não sejamos miseráveis em achar que nossa vida é apenas esta, nos abramos para a Boa Nova e percebamos que o maior sentido de nossa Eucaristia e a comunhão, sendo como que luzes, iguais as do sacrário que indica: “aqui está presente Jesus”.   
O trigo já se perdeu, cresceu e ninguém colheu e o mundo passando fome, passando fome de Deus: São muitos os convidados, são muitos os convidados, quase ninguém tem tempo, quase ninguém tem tempo!


[2] RATZINGER, Joseph. Introdução ao Espírito da Liturgia. São Paulo: Paulinas. 2001.

[i] Do comentário sobre a carta aos Gálatas, de Santo Agostinho, bispo. Liturgia das Horas  - Vol. III, 5º dom. Tempo comum. São Paulo: Paulus.

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