sábado, janeiro 29, 2011

Padre Assis - Um sermão revolucionário

Durante estes primeiros domingos do Tempo Comum vamos recorrendo aos momentos iniciais da pregação de Jesus e hoje chegamos à primeira parte do famoso “Sermão da Montanha”. Nele se expressa a opção de Jesus pelos pobres, uma opção que era confusa em uma cultura religiosa na qual ser rico e viver bem era um “prêmio” de Deus e ser pobre e sofrer era um “castigo”. Todas as leituras da Liturgia da Palavra deste domingo falam dessa opção divina pelos pobres que põem toda a sua esperança em Deus.
O Profeta Sofonias (640 a.C.), que pertencia à classe aristocrática, tem uma verdadeira obsessão: diante da maldade humana e da profunda degeneração moral em que se encontrava o povo no reinado de Manassés, Deus tem que intervir fazendo justiça e “aquele dia do Senhor”, dá voltas na mente de Sofonias. Colorindo “aquele dia de juízo” com tons dramáticos e apocalípticos o profeta faz um chamado: “Procurai a Iahweh vós todos, os pobres da terra, que realizais a sua ordem. Procurai a justiça, procurai a pobreza: talvez sejais protegidos no dia da ira de Iahweh”. (cf. So 2, 3; 3, 12-13) Para Sofonias, a pobreza material não tem nenhum valor, mas sim a atitude de pobre, de “anawin” (termo hebraico correspondente a humildes ou pobres), não perante a sociedade, mas perante Deus. São Paulo (cf. 1Cor 1,26-31) também emprega a mesma linguagem para falar que os primeiros a serem chamados são sempre os pobres, os que o mundo despreza: “o que é loucura no mundo, Deus escolheu para assim confundir o que é forte.” Assim pois, este domingo, nos põe frente a uma meditação muito profunda: descobrir na própria fragilidade e debilidade humana, assim como nas vicissitudes, muitas vezes tristes da vida, o amor de Deus que transforma toda essa realidade em caminho de salvação e de felicidade.
No Evangelho segundo Mateus (cf. Mt 5,1-12), Jesus fala a mesma linguagem que Deus já havia usado com seu povo através dos profetas e aparece como o novo Moisés, o grande legislador do povo hebreu. No Antigo Testamento a lei de Moisés está representada no Pentateuco, cinco livros a ele atribuídos: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Mateus vai apresentar à comunidade judaico-cristã em seu evangelho, uma nova versão da lei em cinco grandes discursos de Jesus, o novo legislador. O solene anúncio desta nova lei começa com o primeiro discurso (Mt 3-7) no qual está um dos mais famosos textos não só do evangelho, mas da literatura universal: o “Sermão da Montanha”. Considerado por muitos como um resumo de todos os ensinamentos de Jesus.
Jesus subindo ao monte, senta-se e ensina: “Felizes os pobres em espírito porque deles é o Reino dos Céus. Felizes os mansos, porque herdarão a terra. Felizes os aflitos, porque serão consolados. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Felizes os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus...”
Sobre poucos textos da Escritura mais comentários se escreveram do que se escreveu sobre as bem-aventuranças. «Impossível comentar aqui todas as bem-aventuranças com as suas implicações concretas. Talvez seja o testemunho de pobreza o que melhor entenderá o mundo atual: um compromisso real da Igreja e dos cristãos com a pobreza efetiva e de espírito, expressa na opção pessoal e comunitária pela libertação dos pobres, no amplo sentido da palavra. Porque “pobreza” é um conceito que engloba muitos aspectos: econômico, social, cultural, espiritual, religioso, carência de dignidade e direitos humanos, marginalização, privação de liberdade, negação de voz e voto, exploração, injustiça, opressão, doença e morte prematura. No conceito amplo de pobreza, como num denominador comum, podem ter lugar as outras bem-aventuranças.» (Caballero, 2001.)
Ao ouvir estas “bem-aventuranças”, talvez fosse melhor não dizer mais nada, calar, fazer silêncio por um momento e pensar que estamos entre aquelas pessoas que estavam escutando o Mestre Jesus naquela montanha, perto do mar da Galiléia. Suas palavras ressoam hoje nos quatro cantos da terra e nos fazem pensar e nos questionar: Como entender em chave humana as bem-aventuranças? Como dizer ao pobre que ele é feliz prometendo-lhe um reino que não pode tocar? O que é realmente a felicidade? Quem é verdadeiramente feliz?
O Evangelho diz exatamente o contrário do que afirma as “religiões do mercado” com sua “teologia da prosperidade” onde a pobreza é sinal de maldição e a riqueza e a prosperidade é bênção. Nossa sociedade também proclama outras bem-aventuranças: Felizes os que têm muito dinheiro; felizes os famosos, que fazem sucesso e sabem viver em grande estilo; felizes os que têm poder e influência; Felizes os que não têm preocupações nem próprias, nem dos outros e não complicam a vida. Na sociedade em que pobreza é sinônimo de infelicidade, é óbvio que sua lógica exaltará os que têm poder, os que triunfam por todos os meios e marginalizará e rejeitará os pobres, os sofredores, os que procuram construir a paz à sua volta, os que não endurecem o seu coração perante a dor, perante a necessidade do outro, aqueles que recusam se impor autoritariamente, aqueles que estão à margem dos acontecimentos sociais, que não aparecem nas colunas sociais dos jornais e revistas da moda. Por outro lado a TV, porta-voz deste estilo de vida com suas telenovelas e suas propagandas divulgam o mito da pessoa feliz e realizada e se converte em padrão da vida para muitos de nós. Estas assim chamadas bem-aventuranças do mundo, dito até de maneira depreciativa, são de uma maneira ou de outra as nossas bem-aventuranças e que se chocam frontalmente com as que Jesus anunciou como sinais de pertença ao seu reino. Então, “é realmente mau ser rico, estar saciado, rir, ser louvado? Friedrich Nietzsche fez incidir a sua severa critica ao cristianismo precisamente neste ponto. Não é a doutrina cristã que deve ser criticada: é a moral do cristianismo que deve ser desmascarada como o “pecado capital contra a vida”. E como a “moral do cristianismo” ele entende precisamente a direção que o Sermão da Montanha nos indica... Ora, o Sermão da Montanha formula a questão acerca da opção fundamental cristã, e como filhos deste tempo sentimos a interior resistência contra esta opção – mesmo se, no entanto, nos toca a estima dos humildes, dos misericordiosos, dos construtores da paz, dos homens puros. Depois das experiências dos regimes totalitários, depois do modo brutal como pisaram nos homens, escarneceram, escravizaram, esmagaram os fracos, compreendemos melhor os que têm fome e sede de justiça; descobrimos de novo os que choram e o seu direito à consolação. Perante o abuso do poder econômico, perante a crueldade de um capitalismo que degrada o homem a simples mercadoria, descobrimos também os perigos da riqueza, acerca do ídolo Mamon que estraga o homem, que mantém grande parte do mundo na sua cruel corda de estrangulamento. Sim, as bem-aventuranças opõem-se ao nosso espontâneo sentimento de ser, à nossa fome e sede de viver. Elas exigem “conversão” – uma mudança interior da direção espontânea, para a qual gostaríamos de ir. Mas nesta mudança se manifesta o que é puro e mais elevado, o nosso ser ordena-se corretamente.» (Ratzinger, 2007.) O que o Senhor nos disse é que há outra felicidade própria do Reino nesta vida e que essa felicidade humana, a das nossas pseudo bem-aventuranças, tem muito de infantil, de pequeno, de frustrante.
Jesus muda a lógica do mundo ao dizer: felizes os pobres, felizes os simples (mansos), os construtores da paz, os que choram e os que são perseguidos por buscar a justiça de Deus, isto é por fidelidade a Deus. Porque ele foi o primeiro a realizar tal programa. “Por se ter solidarizado com os pobres e os fracos, por ter amado os pecadores (os pecadores ricos e pobres), mas por nunca deixar de acusar o pecado, ele, o puro, o pacifico, o paciente, foi ultrajado (Lc 7,34) e executado.” (Bouzon, 1978.) As bem-aventuranças são especificamente cristológicas, quer dizer elas nos revelam de algum modo o coração de Jesus, sua missão, sua entrega ao Pai e à humanidade. Elas nos oferecem uma síntese de toda a vida e missão de Jesus. «Quem lê com atenção o texto de S. Mateus vê que as bem-aventuranças são, no fundo, uma anterior biografia escondida de Jesus, um retrato da sua figura. Ele, que não tem onde reclinar a sua cabeça (Mt 8,20), é o verdadeiro pobre; Ele, que de si pode dizer: vinde a mim, porque Eu sou manso e humilde de coração (cf. Mt 11,29), é o verdadeiro manso; Ele é quem é puro de coração e, por isso, vê permanentemente Deus. Ele é o construtor da paz, aquele que sofre por causa de Deus: nas bem-aventuranças aparece o mistério de Cristo, e elas nos chamam para a comunhão com Cristo. Mas, precisamente por causa do seu caráter cristológico escondido, as bem-aventuranças são também instruções para a Igreja que nelas deve reconhecer o seu modelo, instruções para o seguimento, que toca a cada um individualmente, ainda que, segundo a pluralidade das vocações, de diferentes modos.» (Ibid. Ratzinger.)
As bem-aventuranças contêm em si toda a essência do cristianismo, porém, ao contrário da lei de Moisés, não se apresentam como preceitos, mas como opção fundamental, proposta radical de vida evangélica, como ideário do discípulo de Jesus. As bem-aventuranças não são um código ético, são valores morais que têm de ser vividos, a partir da experiência do encontro pessoal com Jesus, da continuada e permanente conversão e intimidade com ele. Como o fizeram os grandes santos e santas de Deus.
As bem-aventuranças são como portas de entrada no Reino de Deus. Não há outra porta para entrar no seu Reino que a pobreza, a mansidão, a misericórdia, a limpeza de coração, a luta pela paz e a justiça. Jesus assinala que só caminhando por este caminho é que se é feliz. E que os que caminham por caminhos contrários não são! Conseguir ser feliz deveria ser ponto de partida e de chegada da existência humana. Devemos reconhecer, que nem todos os caminhos levam à frágil felicidade e nem toda porta se abre para a felicidade. Os poetas Vinicius e Jobim dizem numa canção: “A felicidade é como a pluma que o vento vai levando pelo ar, voa tão leve, mas tem a vida breve, precisa que haja vento sem parar... A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor, brilha tranquila, depois de leve oscila, e cai como uma lágrima de amor...”
Jesus tem consciência que a felicidade total em nossa vida terrena não existe. Aqui nós não temos que nos conformar com uma felicidade sempre limitada, parcial, mesclada com tristezas.

Bibliografia:
Citação de textos bíblicos – Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
Caballero, B. A Palavra de cada Domingo – Ano A. Apelação (Portugal), Paulus, 2001.

Bouzon, Emanuel.; Romer, Karl Josef. A Palavra de Deus no anúncio e na oração. São Paulo, Paulinas, 1978.
Ratzinger, Joseph (Bento XVI). Jesus de Nazaré. São Paulo, Planeta, 2007.

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