domingo, janeiro 16, 2011

Jesus tira o pecado do mundo

Iniciamos os Domingos do Tempo Comum da liturgia cristã católica que nos leva do Tempo do Natal terminado no Domingo passado até o Tempo da Quaresma que iniciaremos na Quarta-feira de Cinzas no dia 09 de Março. O Tempo Comum é tempo de crescimento, seja na vida brotada no mistério do Natal, seja renovada no mistério da Páscoa; mostra a vida pública de Jesus com todos os episódios básicos e seus ensinamentos fundamentais para nossa fé e nossa salvação.
Neste Domingo, de diferentes ângulos, a Liturgia da Palavra da celebração Eucarística centra-se em três chamados, três missões e testemunhos sobre Jesus Cristo. No capítulo 49 do livro do profeta-poeta Isaías, encontramos a profecia em forma de cântico do “Servo do Senhor”. Deus assim o chama: “Disse-me o Senhor: Tu és meu servo (Israel), de quem estou orgulhoso... fala o Senhor, que já no ventre me formou servo seu.” (cf. Is 49, 3.5-6) O “Servo” manifesta a consciência de que ele foi escolhido por Deus “desde o seio materno”, expressão que põe em relevo a origem de toda a vocação profética: é Deus quem escolhe, chama e envia. A escolha e chamado pressupõem, contudo, a missão e o testemunho. Essa profecia se cumprirá em Jesus que assume a missão redentora. Também o apóstolo Paulo, na Carta aos Coríntios (cf. 1Cor 1,1-3) explica à comunidade que ele foi chamado a ser apóstolo de Jesus Cristo, por vontade de Deus. Portanto, somos convidados, a tomar consciência da vocação cristã a que somos chamados e das suas implicações.
No evangelho (cf. Jo 1,29-34), contemplamos o momento em que João Batista começa a desaparecer deixando espaço para o Salvador, ele cumpriu a vontade de Deus e agora dá o lugar para Cristo. João foi fiel à missão que se lhe foi confiada: “preparar os caminhos do Messias”. Isso supõe o fim de sua carreira, dar passagem para o que vinha atrás dele, ocultar-se de modo progressivo para que brilhasse a luz verdadeira. Ele foi chamado a dar testemunho de Cristo, testemunha da luz e como tal cumpriu a sua missão. Se o Batista aceitou seu papel secundário e chegado o momento se retirou, temos que aprender, também nós, a não querer ser protagonistas da Salvação.
O Quarto Evangelho nos leva às margens do rio Jordão e a esta figura empolgante na fidelidade à missão profética, demonstrada pela perseguição e martírio e ao mesmo tempo este homem que tem algo de enigmático, como todos os que se aproximaram dos mistérios divinos. A fama de João e do seu movimento se estendia cada vez mais e uma numerosa multidão vinda de todas as regiões acorria para escutar sua palavra exigente que chegava a recriminar até a conduta imoral do rei Herodes. O Batista não se importava com o perigo que aquela pregação colhia. Por isso falava com clareza e ousadia a quantos chegassem. Às vezes eram os poderosos saduceus, em outras ocasiões foram os fariseus ou soldados que abusavam dos seus poderes. Para todos ele teve sempre uma palavra livre e corajosa que denunciava a falta de retidão de suas condutas e que era preciso corrigi-las. (cf. Lc 3, 1-19) Que bela lição para nós cristãos hoje, João nos dá, diante do nosso silêncio muitas vezes comprometedor, de tanta ausência de profecia e até covardia que há entre nós.
O Messias vai iniciar sua vida pública sendo apresentado com o testemunho de João a favor da sua messianidade e divindade: “Aí está o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Dele eu disse: Depois de mim vem um homem que existia antes de mim, porque está antes de mim. Embora eu não o conhecesse... Contemplei o Espírito descendo do céu como pomba e pousando sobre ele.” (Jo 1,29-30.32) “Será legitimo dizer que as palavras do Precursor, nesse texto, querem ser mais do que uma reminiscência histórica, antes uma forma solene de, no próprio evangelho, resumir e tematizar as grandes linhas da sua mensagem a respeito de Jesus.” (Bouzon, 1978.)
A apresentação de Jesus como o “Cordeiro de Deus” talvez para nós não nos fale muito porque não pertencemos a uma cultura pastoril. É conveniente que nos detenhamos um pouco para tentar descobrir qual o significado desta expressão metafórica e simbólica. O rito da Eucaristia conserva este belíssimo canto-oração do Cordeiro, o “Agnus Dei” que acompanha a ação de fração do pão eucaristizado, como o pai de família partia o pão nas ceias judaicas. O canto, introduzido desde o século VI na liturgia, é de origem oriental e em forma da ladainha invoca Cristo como o Cordeiro, como o Servo que se entrega por nós para “tirar o pecado do mundo”. Não se pode entender esta expressão se não conhecemos o sentido do “Cordeiro pascal” na experiência judaica. O cordeiro era o animal oferecido em sacrifício, lembrando a libertação do povo hebreu escravizado no Egito; cujo sangue assinalou as suas casas. A partir daquele momento todas as famílias se reuniam na noite da páscoa e sacrificavam um cordeiro. O cordeiro se converteu assim no símbolo da páscoa da libertação.
“As prescrições rigorosas que devem ser observadas, a respeito do cordeiro pascal, mostram como este animal preparado como comida para a família toda (e nunca para não-israelitas), tornou-se um símbolo da pertença ao povo eleito, membro daquele povo que possuía a promessa de Deus. Ainda que a pouco e pouco, a matança dos cordeiros pascais se revestisse dum rito sacrifical, o cordeiro nunca era tido como vitima de expiação pelos pecados. Todavia, Jesus é o cordeiro num sentido novo. Ele é, simplesmente, o cordeiro de Deus. Somos o povo que se distingue por aquele cordeiro que pertence totalmente a Deus, e pelo qual Deus fez surgir uma nova era. “Ele tira o pecado do mundo”. Aqui está explicitado o aspecto novo... o evangelista coloca nos lábios do Batista como que uma antecipação dos acontecimentos pascais, na morte de Jesus. Enquanto no templo se preparavam os cordeiros para as inúmeras ceias nas famílias judias (cf. Jo 18,28): (o dia da “preparação”), Jesus é conduzido ao tribunal e daí à execução, no patíbulo da cruz... a Igreja primitiva ouve e medita as palavras de João pelo prisma da experiência pascal. Por isso, aquela confissão do Precursor torna-se uma discreta e todavia eloquente cristologia... a Igreja na liturgia, celebra o mistério divino, lembrando a humildade e a frágil pequenez deste Cordeiro que se introduz silenciosamente na história do mundo”. (Ibid. Bouzon.)
Para o autor do Quarto Evangelho Jesus é o “Cordeiro de Deus”, porque tem a plenitude do Espírito. Seu sacrifício na cruz marcou-nos para sempre como pessoas livres de tudo aquilo que nos escraviza a que chamamos pecado. Com a certeza de que ele tirou o pecado que dá a morte, para que vivamos como pessoas livres, como filhos e filhas de Deus, membros de sua grande família. “Infelizmente, o pecado é uma realidade onipresente entre nós e dentro de cada um, hoje, ontem e sempre. É certo que estamos redimidos, fomos chamados à santidade de filhos de Deus e estamos a viver na sua amizade e graça como consagrados e libertados por Cristo: mas não nos tornamos imunes ao pecado. O mal está no meio de nós, embora vulgarmente não se denomine com o termo “pecado”, já que, para muitos, parece defasado.” (Caballero, 2001.)
O “pecado do mundo” é mais amplo e profundo que os pecados pessoais que cometemos individualmente. O pecado do mundo é um pecado social e estrutural que afeta a comunidade inteira de pessoas. “Na sociedade nacional e internacional ganha a exploração, a pobreza, a fome, a ignorância, a violência, o sofrimento de tantos inocentes, a marginalização dos que não têm voz, numa palavra, a violação dos direitos humanos. No mundo do trabalho abunda a competição desleal, o desemprego, a insegurança. No mundo da família nota-se a falta de calor, falta de diálogo e de entendimento, conflito de gerações, falta de amor, infidelidade, divórcio e aborto.” (Ibid. Caballero.)
É verdade que, ainda que não seja a mesma coisa, há uma relação íntima ente os pecados individuais e o pecado do mundo, porque o pecado do mundo se concretiza e se realiza em e através de nossos pecados individuais sem os quais não haveria pecado do mundo. Cristo veio tirar o pecado do mundo e os pecados individuais. O pecado do mundo é sempre o pecado contra o amor, contra o mandamento novo que Jesus nos ensinou. “Entre os muitos aspectos surpreendentes que se desprendem da compreensão de Jesus, um, com certeza, é o mais surpreendente de todos: o critério máximo é o do amor, também para avaliar o pecado. Ele conclui o episódio da pecadora de modo magistral: porque muito amou, muito lhe é perdoado. E assim, de modo magistral, mostra que a pastoral do pecado não se concretiza numa cobrança sobre os muitos ou os poucos pecados, sobre sua maior gravidade ou não, mas exatamente sobre uma oportunidade única para desvelar a força do amor. Não se erradica o pecado com rancorosas admoestações, mas exatamente com amorosos convites para “ir e não pecar mais”. Concretamente isto significa que as pessoas e a humanidade só passarão a se sentir menos atraídas e menos ameaçadas pelo pecado na medida em que aprenderem o grande mandamento, na teoria e na prática.” (Moser, 1996.)
Ante a realidade de nossos pecados pessoais e sociais, podemos cair em um grave perigo: Resistirmos a reconhecer nossos próprios pecados e nossos males. Embriagados por nossa soberba acreditamos estar acima do bem e do mal. Queremos convencer-nos a nós mesmos de que estamos no caminho certo quando há tantas coisas que urge endireitar em nossa vida, em nossa sociedade e em nossa comunidade eclesial. Um dos piores males do nosso mundo é a eliminação da “consciência do pecado”. Lembremo-nos que não há pior cego do que aquele que não quer ver...
Reconheçamos que necessitamos de salvação, porque os respingos do pecado do mundo nos chegam a cada um de nós pessoal e comunitariamente. Os cristãos não podemos nos conformar em sermos individualmente bons, devemos lutar ativamente contra o grande pecado estrutural do mundo, contra o pecado do desamor. Conscientes de que eu não vou mudar definitivamente o mundo, mas a minha luta é necessária para que o mundo mude, pois como já disse alguém, de muitas ações individuais boas se faz uma sociedade boa. A nossa missão, na sequência da de Jesus, consiste em lutar contra “o pecado” instalado no coração de cada um de nós e instalado em cada degrau da nossa vida coletiva. Jesus, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo é a nossa esperança, nossa vitória e a nossa libertação. Por Cristo e com Ele somos capazes de vencer o pecado a cada dia e construir o seu reino de justiça, verdade e amor.
Padre Assis - Pároco de Fátima

Bibliografia:
Citação de textos bíblicos - Schökel, Luis Alonço. Bíblia do Peregrino, São Paulo, 1997.
Bouzon, Emanuel.; Romer, Karl Josef. A Palavra de Deus no anúncio e na oração. São Paulo, Paulinas, 1978.
Caballero B. A Palavra de cada Domingo, Ano A. São Paulo, Paulus, 2001.
Moser, Frei Antônio. O pecado, do descrédito ao aprofundamento. Petrópolis, Vozes, 1996.

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